Os matadores


por Carlos Eduardo Pereira

Esse tipo de briga era comum na Escola Munro. Um garoto deu em cima da namorada de outro garoto, que veio tomar satisfações com o primeiro. Naquele tempo os conflitos ainda eram resolvidos no braço. Na hora da saída juntava uma penca de estudantes na pracinha para assistir ao combate. Às vezes vinha até gente de fora. Chegava mesmo a rolar uma banca de apostas.

A coisa estava feia para o lado de Rico D’Ambrosio. Cinco atletas da equipe de futebol se apresentaram para prestar solidariedade ao capitão do time. Mas Rico, o tal primeiro garoto, era abusado. Nos poucos intervalos do massacre ele buscava ânimo, não se sabe de onde, para lançar, assim, meio de perfil, um sorriso amassado para Alice, valioso objeto em disputa. A menina correspondia discreta enquanto os mini gangsteres voltavam à carga, cada vez com mais disposição.

Giovanni “Grandalhão” Santini não tolerava covardia. Ao presenciar o magrelo encarando o grupo inimigo sem titubear, resolveu comprar o barulho e equilibrar a balança. Juntos conseguiram derrotar os oponentes, botando os meninos para correr. Desde então, se tornaram um só (e seria assim por muitos anos ainda). Rico, a cabeça, Grandalhão, o muque, e Alice, o coração.

Moravam todos no mesmo bairro, ao norte do município. Os rapazes iam se virando do jeito que dava. Pequenos delitos aqui e ali os apresentaram a uma variedade de reformatórios. Aos poucos a dupla foi conquistando respeito, se enterrando alegremente no submundo local.

Ela costumava ficar de frente para o espelho saboreando as provas do vestido reformado, que fora da mãe e antes disso da avó, enquanto repetia incansável em voz alta: Alice D’Ambrosio, Alice D’Ambrosio. Era tempo de substituir o Lofredo original pelo outro, que julgava sonoro, ao menos mais elegante que o surrado nome de família. Grandalhão foi o padrinho.

Engravidou na primavera. A espera pelo herdeiro encheu de alegria e entusiasmo a casa recém comprada, fruto dos lucros que começavam a nascer das atividades do companheiro na organização. Foi nesse período, talvez um pouco antes, que o marido passou a ser chamado de Rico Três Olhos. O apelido fazia referência à assinatura profissional: Mandava suas vítimas para o inferno com um único tiro, certeiro, bem no meio da testa.

Grandes sacos pretos, recheados de folhas secas, ficavam esquecidos no fundo do quintal. Foi ali que Rico jogou o trenzinho de madeira, presente de boas-vindas para o rebento, ao sair batendo o portão. Não se deu ao trabalho de nem mesmo desembrulhar. Recolheu de volta ao regressar para casa de madrugada e trancou no armário do sótão. O novo enxoval, comprado às pressas pela avó, também não combinava com a decoração, trabalhada em diferentes tons de azul, que o pai preferiu manter. Alice acostumou-se a testemunhar solitária as gracinhas que a bebê a cada dia lhe ofertava sorrindo, enquanto Três Olhos se envolvia mais e mais com o trabalho e as distrações da rua.

Havia um assunto delicado que precisava ser resolvido na região próxima à zona portuária. Uma família, responsável por outra área da cidade, vinha fazendo seus negócios por ali. Eles bancavam os surdos, apesar dos conselhos encaminhados, e, certamente, buscavam aumentar sua fatia do bolo. Prenúncio de guerra. Como se dizia naquela época, os soldados estavam armando os colchonetes. O velho par Três Olhos-Grandalhão foi, mais uma vez, convocado para a linha de frente.

A missão era apagar um bem colocado membro da facção adversária. Depois de horas de tocaia o alvo surgiu no beco, como previsto. Acontece que algo deu errado e Três Olhos acabou preso. Tudo indicava se tratar de uma emboscada. Alguém abriu o bico e isso não era coisa que se perdoasse. Grandalhão observava impotente toda a cena, de uma distância segura.

O acordo com o promotor previa o seguinte: Rico entregaria todo o esquema da corporação em troca de liberdade. Seus comparsas foram caindo um a um. Só o Grandalhão fora poupado.

O letreiro piscava torto o nome do estabelecimento: NEST’S. O E e o R iniciais haviam caído há tanto tempo que os moradores da vizinhança já tinham se acostumado a chamá-lo assim. A garçonete limpava o extenso balcão do bar como se não tivesse mais nada para fazer. Era tarde quando os dois forasteiros entraram fazendo a porta ranger, jeito peculiar de anunciar uma chegada.

Bom dia, rapazes! – disse a funcionária ultra animada.
Bom dia? Tá escuro ainda. – um dos homens, o jovem, respondeu mal humorado.
Passou da meia noite já deixou de ser ontem, não te ensinaram isso na escola, não?
Bom dia. Tem como você ver dois cafés para nós? Meus ossos congelaram com esse vento lá fora. – esse tinha um jeitão de chefe.
Café... ô, Grandalhão, vamos executar logo o serviço. Se a gente se apressa ainda dá pra pegar o almoço na cantina do Luigi.
Calma, garoto, você é muito afoito. Podemos muito bem saborear as delícias locais antes de amanhecer. Ainda mais servidos por questa bella ragazza. Na vida tudo tem seu tempo.
Tá certo, tá certo. Diz aí, Gatinha, qual é o seu nome mesmo?
Ricarda.
Ricarda? Isso lá é nome que se apresente? Parece que seus pais não gostavam muito de você, acertei? Mas, peraí um pouquinho. Não é isso que tá escrito aí no crachá, não.
Maria é meu primeiro nome, homenagem à nonna. E se você já tinha lido, perguntou por quê?
Estava só puxando conversa.
Vocês vêm de onde?
Da capital, ora essa.
Sabia! Têm pinta mesmo de cidade grande. Meu sonho é sair desse buraco.
O namorado vai chiar, hein, Gatinha.
Vai não. Aqui só tem caipira.
E os nossos cafés? Tira para nós, por gentileza. Aproveita e traz também uma fatia daquela torta ali, ó. Quer também, Rato?
Já disse pra não me chamar assim.
Ôôô... esqueceu de com quem você está falando?
Com todo respeito, Sr. Santini, é que eu não gosto que me chamem dessa maneira.
Tudo bem, Rato, tudo bem. Não precisa se borrar, o quê que a mocinha vai pensar de mim?
Que barulho é esse lá dentro? – o ruído assustou o rato.
Ah, é o Charlie! Ele pensa que me engana, mas toda noite tira um cochilo no estoque.
Chama ele lá para nós. Diz que um cliente quer lhe falar. O Rato vai com você para ter certeza de que não vai se perder.
Tem mais alguém malocado nessa espelunca, ô Preto Velho? – Rato chacoalhava o homem pelo avental.
O que o meu colega quer saber é se não há mais algum funcionário na casa.
Não, senhor. Aqui só tem eu e a moça.
Você conhece um tal Rico D’Ambrosio?
Não tem ninguém com esse nome aqui por essas bandas, não senhor.
Ora, Rato, é claro que hoje ele usa outro nome. O amigo por acaso sabe de algum italiano metido a galã? Ele costumava andar assim, ó, meio de lado. Gingando feito malandro das antigas.
Ah, esse é o Tony! Só pode ser o Tony. Ele é velha guarda assim que nem você?
Bom, menina, acho que sim. Pode-se dizer que sim. Isso, velha guarda.
Então, eu não disse? Tony Fratello!
Vamos na casa dele, Sr. Santini. A gente executa o serviço e sai logo desse fim de mundo.
Você me leva junto?
Ficou maluca, Gatinha?
Leva, Ratinho, você não vai se arrepender. Eu nasci para rodar o mundo! Quero conhecer o mundo, sacou? E então, leva?
Tá certo, tá certo, levo sim. Garanto. Você vai se amarrar, Gatinha. Eu conheço tudo na cidade grande. Pode contar comigo pra te apresentar o mundo.
Ele vem aqui todo dia.
Menina...
Ah, Charlie, não enche! Ele vem sim, toda manhã.
E a que horas mais ou menos?
Sete. Ele chega sempre às sete horas.
E não tem erro isso, amico?
Senhor, eu trabalho aqui há dezessete anos e nunca, nunquinha mesmo, ele chegou sequer atrasado. Dá até para acertar o relógio por ele.
Ótimo. Não é por nada, mas é que fomos compagno d’armi por toda uma vida, acho que por tempo demais até, e gostaríamos de lhe fazer uma surpresinha. Você entende, não é mesmo?
Então é melhor se apressar! Está quase na hora já, daqui a pouquinho ele deve estar estourando por aí. – ela disse, dando uma espiada pela vidraça.
Até que enfim um bocado de ação nesse cafofo. Como é que a gente faz, Sr. Santini?
Não sei, não sei. Me deixa pensar um minuto.
Tem o quartinho dos mantimentos.
Como é que é?
O quartinho. Podem esperar por lá enquanto o amigo de vocês não chega. Aí, no momento certo, é só sair e matar as saudades.
Você tá pensando que eu sou otário, Gatinha? Deu pra dar defeito agora, é? E se você tranca a gente e sai pra avisar alguém?
Cala a boca, Rato. A ideia é boa sim. Aliás, é perfeita, até porque ela vai estar lá dentro com a gente, certo, mia cara? E eu tenho certeza de que o amigo ali vai fazer tudo direitinho, não vai?

O som abafado de dois estampidos quase não se percebeu. Rica deixou a despensa saltando por cima dos corpos. Cada um deles tinha agora um olho a mais. Ela dá uma piscadela discreta para Charlie ao passar para o outro lado do balcão. Já podia ocupar a mesa de sempre para o tradicional café da manhã com o pai.