O vendedor
por Gustavo Sant'Anna
Começou por
vendê-las na praia, anunciando-as bem alto, com seu pregão seco e rouco:
CACETADAS! Vendo cacetadas. E causava estranhamento na reserva do recreio. Como
era de se esperar, não vendeu nada no primeiro dia, nem no segundo, tampouco no
terceiro... mas no quarto dia, ao cair da tarde, hora em que as pessoas de bem
começam a retornar às suas casas, energizadas de sol, ouviu o chamado, em um
carregado sotaque lusitano: dai-me uma gajo, mas desejo recebê-la entre as
nádegas, de modo que o som chegue estalado aos meus ouvidos, pois é assim que a
aprecio. E abaixou a sunga, deixando à mostra as bandas embranquecidas. O
caceteiro aproximou-se do cliente e com ares de digno profissional cravou-lhe
uma bofetada. Serviço prestado, o homem estendeu a mão e disse “são 10 reais”.
O galego olhou-o surpreso, procurando intenções libidinosas, e quando não as
encontrou enfureceu-se! Ora seu paspalho, então és louco, é isso que és? Estás
a vender cacetadas como se fossem queijo coalho e por isso queres recompensa?
Ora vai-te a ver se estou lá na esquina! O caceteiro suspirou profundo, como se
pensasse “mais um caloteiro”, e replicou monocórdio: eu vendo um produto de
qualidade, sou um profissional dedicado e lhe ofereci a melhor cacetada do
mercado. Ou recebo meus 10 reais ou chamo a polícia. O galego perscrutou o
vendedor dos pés à cabeça. Em fração de segundos, sondou-lhe o vigor físico,
caso escolhesse a violência como saída, e analisou-lhe o semblante, procurando
traços de loucura que justificassem o comportamento inusitado. O caceteiro era
forte, mas não aparentava loucura alguma, e o português, ainda irritado por ver
frustrados seus impulsos carnais, resolveu levar o impasse às mãos da justiça:
“chamemos a polícia”. Pararam a viatura, desceu o policial. Bom dia “cidadões”,
em que posso servi-los? O caceteiro abriu a boca, mas o galego tomou-lhe a
frente. Este gajo ensandecido esta a vender cacetadas em plena praia. Sim, e
esse senhor as comprou, mas não quer pagar. Ora pois, mas que não pago mesmo,
onde já se viu pagar para levar cacetes. Se não gosta do produto não comprasse.
Tu és um louco, demente e... “peraê, peraê”, vamos com calma, interrompeu o
policial, não “tô” entendendo nada, porra. Fala um de cada vez.
O caceteiro
ergueu a mão e com tal autoridade que o bravo lusitano se calou. Então, expôs
assim seus argumentos: senhor policial, sou um humilde vendedor autônomo,
cegamente respeitador da lei e da ordem, que acordou às 4h da manha para chegar
aqui, tomou um ônibus, um trem e uma van e está desde cedo na labuta. Este
senhor comprou o meu produto e, após tê-lo consumido, recusou-se a pagar. E o
policial perguntou: e que produto você vende, rapaz? Vendo boas cacetadas.
Como, rapaz? Cacetadas, cacetadas de vários tipos: estaladas, em concha,
cascudinhos; fortes, médias e fracas; uma, duas, ou a sessão. Cacetadas... ,
murmurou o policial, sei..., e por acaso o cidadão tem licença para vender tais
cacetadas? Como tenente? Vou repetir, cidadão, POR ACASO O SENHOR É CADASTRADO
PELA PREFEITURA, LICENCIADO PELO ESTADO, QUERO DIZER: O SENHOR TEM ALGUM
DOCUMENTO DANDO PERMISSÃO PARA VENDER CACETADAS NESTA PRAIA? Nã, não senhor, na
verdade eu não sabia que tinha que ter licença pra... Então o cidadão se diz um
profissional autônomo, arrota profissionalismo, mas vende seu produto na
ilegalidade? O português fazia uma força tremenda para manter o silêncio,
enquanto se deleitava com a situação difícil em que se encontrava o caceteiro,
até que, não conseguindo mais se conter, destilou o lusitano veneno: prenda
logo este gajo safado, seu policial, não vês que não passa de um matungo, um
sacripanta, um velhaco da pior espécie, a vender produtos que ninguém em sã
consciência venderia e a extorquir vultosas somas de dinheiro de pessoas de
bem!?
E foi assim
que, sem que o galego se desse conta, suas palavras salvaram o caceteiro,
funcionando como um taser paralisante descarregado sobre o homem da lei: “vultosas somas de dinheiro,
extorquir pessoas de bem, produto que ninguém vende”, e as palavras ressoavam
como um mantra girando em torno à cabeça do tenente, que olhando os próprios
olhos, de dentro para fora, percebia aquela faísca de luz que conhecia muito
bem... e indagou ao caceteiro: quanto
custa exatamente a cacetada? Bem, senhor, depende da modalidade. Mas, grosso
modo, cobro 10 reais se for uma cacetada única, 20 se for dupla, e 30 a sessão
completa. Hummm, resmungou o policial, e quanto você imagina que poderia cobrar
por uma cacetada com um porrete legítimo de um homem da lei? Bem, capitão...,
tenente, retrucou o oficial, mas com essa eficiência chegará em um instante a
capitão, sorriu o caceteiro (e o tenente, pela primeira vez, sorriu de volta),
bem, como eu dizia, creio que uma cacetada bem dada com um material de
qualidade como o do senhor, artigo raro no mercado das cacetadas, poderia
chegar a uns... 50 reais por nádega!
O policial
refletiu, refletiu e com ar austero sentenciou: olha, caceteiro, num primeiro
momento pensei que o senhor fosse um desses que acha que pode exercer seu
trabalho da forma como quiser, fora dos regulamentos da ordem e da lei, e minha
intenção era conduzi-lo à delegacia para averiguação. Só que, durante nossa
conversa, percebi que o cidadão é um profissional competente, que conhece
profundamente seu metiê e, por isso, merece uma segunda chance. Afinal de
contas, que policial seria eu, se não garantisse ao homem de bem a chance de
ganhar o pão da família com o suor de seu rosto, não é mesmo? Portanto, tenho
uma proposta justa a fazer à sua pessoa: darei permissão ao senhor para vender
suas cacetadas aqui na minha praia, além disso, garantirei sua proteção, a
exclusividade de vendas em toda a reserva e, ainda por cima, emprestarei meu
cassetete para que o senhor trabalhe durante a madrugada, contanto que esteja
pontualmente aqui às 5h da manhã, já que a revista da tropa é às 6h e eu
preciso me apresentar ao batalhão com meu cassetete nas calças. Por fim, em
troca de todos esses favores que prestarei ao senhor, o caceteiro dividirá
comigo os ganhos da sua atividade, 50% a 50%, pagamento semanal, que aceitarei
apenas para não fazer desfeita à sua demonstração de gratidão. Espero,
sinceramente, que o senhor compreenda a generosidade de minha proposta,
arrematou o valente soldado, dando leves pancadas com o bastonete na palma da
própria mão. O senhor compreende, não compreende, cidadão?
Claro
coronel, claro que sim, podemos começar agora mesmo essa promissora parceria, o
senhor só terá de me ensinar como usar o cassetete, pois não tenho experiência
com tal ferramenta de trabalho e, atento que sou à qualidade de meu serviço,
necessito saber utilizá-la com a maior proficiência técnica possível. Nisso, o
português, que contrariado com o rumo da conversa preparava-se para partir,
levantou-se subitamente da pedra em que se sentara e, quase aos berros,
intrometeu-se no diálogo dos dois homens: se os senhores acharem de bom
alvitre, posso servir-lhes de cobaia para os testes, desta feita colaboro, a um
só tempo, com a lei e a educação deste país, que tão bem soube me dar e
receber! E enquanto discursava já se foi aproximando da viatura, abaixando a
sunga e deixando à mostra a bunda alvíssima, algo carnuda, que mais parecia um
pequeno urso polar de pelúcia. O policial, então, de imediato, sem sequer
agradecer-lhe o oferecimento, tira o cassetete das calças, ergue-o
perpendicularmente às nadegas do português e desfere uma pancada no felizardo
que, a esta hora, já estava devidamente de quatro, com as mãos apoiadas no
veículo, os braços esticados para a frente, a sunga arriada nos joelhos e o
bumbum empinado para a lua (a qual, por sinal, brilhava cheia e sorridente como
a bunda do galego). O tenente, ofegante, com uma centelha faisquenta entre as
pupilas, recupera a muito custo o autocontrole e transmite o bastão ao
caceteiro, agora casseteiro, que, apropriando-se da ferramenta e com o
semblante impassível de um cirurgião suíço, imita com precisão, dessa vez na
nádega direita do patrício, o golpe certeiro que havia apreendido com o novo sócio.
Ambos, então, satisfeitíssimos com a promissora sociedade e, poder-se-ia mesmo
dizer, empolgadíssimos com a perspectiva de ganhos futuros, apertam-se as mãos
com a firmeza dos empreendedores, enquanto que o português, ainda em estado de
transe, com rosto e tronco estatelados sobre a viatura, repete, como que numa
prece, a enfadonha ladainha: oh minha senhora dos cacetes, abençoe esta
terrinha benfazeja, ô terrinha; oh minha senhora dos cacetes, abençoe esta
terrinha benfazeja, ô terrinha... oh minha senhora dos cacetes, abençoe esta
terrinha benfazeja, ô terrinha...