A casa queima
por Clarisse Zarvos
Uma bolha
no dedo indicador provoca um incômodo pontual, mas independente disso sou
obrigada a trabalhar sem descanso. Suada e firme, executo a tarefa, sistematicamente.
O cabo preto da faca afiada, eu abraço forte com palma e dedos, como um polvo
de cinco tentáculos. Eu sou a mão de Maria Clara e neste instante corto as
cenouras, as cebolas e os pepinos para os almoços da semana inteira. Minhas
unhas estão roídas e tenho cheiro de louça engordurada e detergente. Sou
decidida. Tenho talento e desenvoltura para este trabalho, que executo desde
menina. Diferente é meu desempenho com as tesouras feitas para a maioria. Sou a
mão esquerda de uma mulher canhota e nunca me adaptei à estranha direção deste
objeto.
Nas linhas que me
desenham constam informações preciosas sobre os futuros de Maria Clara: uma
ruptura brusca na juventude, uma dificuldade aos quarenta e cinco anos, duas
grandes viagens, que Maria Clara nunca fez, e dois filhos, dos quais Maria
Clara só teve um. O mapa do destino, eu exibo quando me abro, mas cabe à sua
dona encontrá-lo ou dele se perder. Não julgo os desencontrados. Nem toda
deriva é morte certa. E de que vale uma viagem toda feita de certezas?
Hoje é o aniversário de Maria Clara e,
portanto, meu aniversário. Daqui a pouco o Jão chega com um vasinho de flores,
ela pensa, violetas, minhas preferidas. Ele vai lhe dar um beijo na testa e me
apertando vai dizer “ô minha véia, que esse dia seja muito especial, que você
tenha muito amor e saúde e que continue sendo a melhor mãe do mundo”. O bolo
está cheirando. Mais cinco minutos e já posso desligar o forno. As mãos também
sentem cheiros, ao contrário do que se pensa. Enxergam, saboreiam gostos
amargos, salgados, doces e têm ideias.
Maria Clara e Jão vão conversar com
as palavras da voz e eu vou tentar entrar na discussão. Nos momentos mais
animados, nas frases mais acaloradas, vou dançar de um lado para o outro a
linguagem dos gestos, que insiste na tentativa de dizer aquilo que não se consegue
somente com as palavras. Aí, eu e o Jão vamos escutar o barulho da fechadura
girando, mas Maria Clara vai se fingir de desentendida. Não vai demonstrar
nenhuma expectativa, embora eu esteja suando. “Ih, o pai chegou mais cedo do
serviço!”, o Jão vai falar. Maria Clara estará linda. E eu também, hidratada
com óleo de lavanda, não mais cheirando a detergente e louça. Sim, já já vamos
tomar banho e já sabemos qual vestido Maria Clara vai usar. Escolhemos um discreto
para não alardear nossas esperanças. Queremos que tudo pareça natural e que
atribuam nossa beleza a circunstâncias inexplicáveis; queremos que pensem
simplesmente que uma aura de aniversariante torna mais alegre o rosto de Maria
Clara, como uma maquiagem que não haveria de ter passado e que, no entanto, eu
mesma passei.
O Theo vai colocar a pochete em cima
da mesa e transpirando pelo bigode, vai lhe beijar os lábios, como nos sonhos.
Todos vão comer o bolo que eu preparei. Repetirão as fatias, uma, duas, três
vezes. Ficarei pra lá de orgulhosa dos meus talentos. A família vai beber a
garrafa de vinho que o Theo trará da rua e como não estão acostumados ao álcool
ficarão alegremente tontos. Eu estarei dormente e relaxada, provavelmente
jogada num canto. O Jão vai dormir no sofá. Maria Clara, Theo e eu, iremos pro
quarto e com dentes e unhas roxos de uva, seremos felizes.
Estou quente do esforço repetitivo
do corte das cenouras e sinto a ameaça da tendinite. Maria Clara me pede para
parar. Eu obedeço aliviada. Ela se senta em frente à televisão como se aquele
fosse um dia comum. Quer descansar a mente sei lá de que pensamentos que lhe
acontecem. Como se não esperasse Jão, Theo e as surpresas dos festejos. Escuta,
sem dar muita atenção, ao
blábláblá de um apresentador de programa de auditório, que entre as mais
insossas atrações anuncia medicamentos antianêmicos, presuntos, secadores de
cabelo, poupanças, carros populares e bilhetes de loteria instantânea. Um
domingão daqueles. Adormeço
em sua coxa com o cafuné da outra mão, a direita, que me alisa doce e
lentamente. Sonho com corpos macios sobre os quais deslizaria com gosto, barbas
fartas, membros pulsantes. Sonho com muitos corpos, menos com o de Theo. Maria
Clara me convida para um passeio entres os pelos do seu sexo e eu caminho até o
seu clitóris, ora com passos firmes e decididos, ora leve, dedo-ante-dedo. Estou
úmida. Minha pele tem um cheiro forte, que Maria Clara não lava.
Maria
Clara também sonha sem querer, com amores corriqueiros, horizontes, liberdades
e intensidades inclassificáveis; apesar da imaginação não caber no seu cotidiano
repetitivo. Maria Clara não pode ter tempo. Vez em quando os suspiros lhe
escapam, mas imediatamente são censurados pelas listas de supermercado, pelas
camisas à passar do marido, pelo orçamento mais do que apertado da casa. Não
sorri nunca, mesmo quando sorri.
O
telefone toca. Maria Clara corre para atender como uma fera que avança sobre a presa.
Quem liga nesta data só pode ter a
intenção de dar votos de felicidade.
-Alô!
- Alô.
Dona Maria Clara Faria?
-É ela.
-Gostaríamos
de oferecer um novo cartão de crédito. A senhora tem interesse?
Maria
Clara coloca o telefone no gancho sem responder. Cartão de crédito? No domingo?
Mal desliga, o aparelho toca novamente. A voz baixinha do outro lado lhe é
familiar, mas eu não escuto. Ouço apenas Maria Clara, que diz:
- Oi, Jão tudo bem? Já está
chegando? Está tarde, né? Aconteceu alguma coisa? Ah, na casa do Geléia? Você
vai dormir aí? Ah, oi! Desculpa... Não, está tudo bem. Não tem problema,
imagina, problema nenhum, imagina. Seu pai? Ah! Está aqui assistindo tv. Sim,
vou deixar na geladeira, arroz e frango. Imagina! Vocês vão ficar em casa
mesmo? Problema nenhum. É que sabe filho, hoje é domingo e...
Maria
Clara torna a desligar o telefone. Catatônica, fala para ninguém.
-
Não esquece de escovar os dentes antes de dormir.
O
relógio marca meia-noite. Pelo visto o Theo não vem mais dormir em casa, pela
terceira vez nessa semana. Maria Clara pensa em chorar. Há cinco anos ela não
chora. Vive entupida de renites e sinusites. Pensa em chorar. Desiste. A falta de Theo e Jão é dor já
acostumada. Há quanto tempo será que os espera? Algumas horas? Um dia? Dez
anos? Pouco importa. A sua falta é outra. E se é a falta deles (quando é ) é
porque não eles vêm nunca e ela sabe. Mesmo quando estão lá.
Ela
sente que alguma novidade só atravessará sua vida quando lhe findarem as
expectativas. E quanto a isso não há como se enganar. Ou é ou não é. Não
adianta fingir a ausência de uma espera, a ausência de uma ausência,
simplesmente. A falta de expectativa não está na forma, está na condição. É
preciso mudar a condição. É preciso alterar o estado sem nome.
Sem
mais nem porque, agarro um frasco com álcool, que desejo derramar sobre os
móveis da casa, incendiando a memória e os apegos de Jão e de Theo. Penso em
fugir (crime) ou quem sabe ficar (vítima); as labaredas engolindo o vestido e a
pele, as cinzas como legado. Eu puniria eles e me puniria também. Mas neste
segundo que segue, abandono o frasco, por cautela ou descuido, por culpa ou
simplesmente porque não vale a pena. Porque talvez ainda nos dê tempo de
vislumbrar outras possibilidades tão óbvias e ao mesmo tempo ocultas de nossa
visão embotada; possibilidades reveladas somente no impossível. Quiséramos nós
ter uma ideia no ritmo certo da pulsação dos acontecimentos. Ou ainda:
quiséramos nós ouvir o incerto e fazer daquilo que escapa à métrica, música
experimental.
Conduzo
Maria Clara até a escrivaninha. Toco uma caneta vermelha mordiscada na
extremidade, mesma cor do esmalte descascado. Escrevo um bilhete breve, deixo
sobre a mesa, abro e fecho a porta, vou até a garagem e ligo o carro. Primeiro,
o quarteirão da casa; depois, a principal rua do bairro; em seguida, a avenida
do Centro e uma estrada sem destino certo. Eu, mão de Maria Clara, giro o
volante, no balanço das curvas e buracos, subidas e descidas. Eu, pé de Maria
Clara, piso no acelerador. Eu, perna e joelhos e pelos e barriga e olhos e
boca, nariz, faringe, saliva, estômago, pulmão, apêndice, cicatrizes, manchas,
xixi, resfriado, arrepios; eu, corpos que por aqui passaram, em um abraço
desejoso de fusão ou em um esbarrão na fila do banco; eu, corpo-memória dos que
vieram antes de mim; eu, corpo-trajeto, em conversa com a cidade, concordando e
fugindo das melhores maneiras de sentar, de andar, de concordar, de discordar,
de sentir, de fugir, de ser mulher, de ser mãe; cansada de ser isso aí que
vocês queriam que eu fosse e que eu quase acreditei; vou embora. No banco de
trás, uma muda de roupa e nossas economias, que ficaram lá no cofre, paradas,
esperando por uma emergência. Pois bem, esta é uma emergência. Vento no rosto,
música alta, futuros possíveis, outros encontros. Na escrivaninha da casa, eu, corpo-bilhete,
fico. Preenchido por três palavras manuscritas em vermelho: “me/ sinto/ livre”.
Ainda que provisoriamente.