Teatralizar para transformar!
"Ser cidadão não é viver em sociedade, é transformá-la."
Augusto Boal
por Eduarda Caroline
Para quem é o Teatro do Oprimido? Restringe-se a um grupo? Quem é o oprimido?
Respondo que vivemos em sociedade e muitas vezes não sabemos o papel que ocupamos nela, não compreendemos ao que nossa posição social nos sujeita, não entendemos a nossa própria responsabilidade na vida social. O Teatro do Oprimido tem como finalidade despertar a consciência sócio-política das pessoas; Através da prática teatral, podemos nos despir do nosso “personagem social”, assumindo outros papeis, outras perspectivas, e, muitas vezes, acabamos descobrindo as opressões que sofremos e outras, que podemos ser os opressores. Nesse sentido o TO é uma prática para toda a sociedade.
O teatro sempre foi uma prática que mimetiza a sociedade, ou seja, representa de forma lúdica como nos percebemos, a nossa cultura, a nossa práxis. Porém desde os tempos mais remotos dessa prática, que advém do mundo grego com suas tragédias, o teatro é utilizado de uma forma repressiva, representando as classes dominantes e, nunca de uma forma séria, as dominadas. Esta é uma característica que sobrevive até os dias atuais e em outras mídias como a TV e o cinema. O TO se propõe a democratizar o teatro, eliminar a hierarquia ator-plateia; Todos são “spectatores”, o teatro é uma forma de arte que não é limitada aos profissionais; Ele é para todos, todos somos capazes de atuar, porque já o fazemos constantemente no nosso dia-a-dia.
Mas como uma prática teatral pode despertar consciência sócio-política e ajudar a transformar uma sociedade? Explico-vos!
O Teatro do Oprimido tem um arsenal de jogos que não surgiram do nada, são resultados de uma longa experiência com pessoas dos mais diversos lugares, com as mais diversas culturas e percursos. Os jogos são importantes porque para que funcionem, como na sociedade, é preciso seguir as regras. E essas regras não são limitadoras, elas são mutáveis e adaptáveis e desenvolvem a criatividade necessária para qualquer prática artística. Os jogos tem a função de desmecanizar nossas ações cotidianas, fazer-nos perceber os rituais, os gestos que estão tão naturalizados que nem percebemos. Uma vez desconstruídos, os atores podem assumir novos gestus¹ e ações.
Com as técnicas do teatro-imagem (não verbal, não racional) libertamo-nos do discurso cristalizado da linguagem; As imagens corporais revelam muitas das nossas impressões que são mascaradas e policiadas no discurso falado e as imagens em grupo muitas vezes revelam opressões pela relação das posições entre os corpos. Desenvolvendo essas técnicas podemos revelar problemas muito concretos na nossa vida social, e com esses problemas detectados podemos montar espetáculos em que todos participam, plateia e público, na busca de soluções concretas e possíveis para essas situações. Esse tipo de espetáculo teatral é chamado de Teatro-Fórum, e pode e dever ser constituído dos elementos de qualquer espetáculo: música, dança, figurino, cenário e muita criatividade! Porém, em determinado momento, acontece o fórum, em que as pessoas na plateia, não satisfeitas com as atitudes dos personagens e suas consequências tomam seus lugares, viram atores e nos mostram sua visão de como o problema poderia ser resolvido! É como se no momento derradeiro de uma tragédia, alguém da plateia pudesse tomar o lugar do herói-trágico e reverter a sua situação, impedindo seu destino trágico. Como seria bom, se nas nossas vidas, pudéssemos congelar nossas ações, analisar de fora e retomar nossos lugares, modificando nossas atitudes. Isso é impossível. Mas não no teatro!
Teatro do Oprimido hoje? Para quê?
Penso que mais do que nunca, no Rio de Janeiro e em todo o Brasil, necessitamos de uma reflexão profunda sobre nosso estado sócio-político atual. As constantes manifestações e tensões políticas revelam, além de muita insatisfação, que a própria população não sabe direito como organizar suas ideias, contra quem lutar, que caminhos trilhar em busca da mudança. O teatro se mostra poderoso nesse âmbito: as técnicas de Teatro Legislativo (outra vertente do TO) já ajudaram na criação de leis municipais nos anos 90!
Outra técnica do TO muito eficaz é o Arco-íris do Desejo, criada nos anos 80 a partir da percepção de que muitas vezes as opressões não partem de agressões, ou de outras pessoas, e sim de ideias; são opressões subjetivas; os opressores estão muitas vezes internalizados, causando medo, angústias, privando a espontaneidade das pessoas e sua liberdade. Por exemplo: o medo da polícia, a desilusão com a política, a repressão sexual advinda dos ideais morais de uma sociedade sexista e machista e muitos outros “tiras na cabeça”².
“Não se pode compreender a
relação entre um trabalhador e um patrão sem tentar entender o capitalismo, nem
a relação entre um branco e um negro sem levar em conta o racismo, ou a relação
entre um homem e uma mulher sem considerar o patriarcado.”
Julian Boal
Todos temos responsabilidades e escolhas no âmbito social, e praticar Teatro do Oprimido pode ser uma delas. A arte é poderosa na educação, na cultura, na nossa relação com outros seres humanos. Podemos utilizar o teatro como forma de autoexpressão, autoafirmação e entretenimento. As técnicas, exercícios e jogos do Teatro do Oprimido funcionam incrivelmente bem para o desenvolvimento da técnica pessoal do ator, mas ele só se constitui como tal se utilizado para fins de transformação social. Muitas vezes as transformações são quase imperceptíveis, acontecem em um âmbito muito pessoal, quando, por exemplo, uma pessoa se vê agindo interpretado por outras, consegue perceber as atitudes que estão tendo como consequências pequenas opressões no dia-a-dia e que tem a capacidade de transformá-las, que todos tem essa capacidade.
Sou da opinião de Augusto Boal: “o artista pode dedicar sua vida à arte, mas me interessa muito mais aquele que dedica a sua arte à vida”. Compartilhar a arte, permitir que todos atuem, cantem, dancem, expressem-se; o ser-humano é criativo na sua essência, criar é fundamental para sua qualidade de vida; Não podemos limitar as pessoas permanentemente à condição de plateia. Sendo espect./atores, agindo e observando, nos tornamos mais humanos, seres mais sociais e com menos preconceitos e julgamentos.
Eduarda Caroline cursa o 8º período de Artes Cênicas e, no PET, realiza uma pesquisa teório-prática sobre Teatro do Oprimido na Educação orientada pela professora Alessandra Vannucci.
Para entender mais sobre a relação opressor/oprimido, leia este artigo de Julian Boal, publicado no blog do Instituto Augusto Boal.
¹ Gestus: “correspondente do latim a
gesto: ações que expressão ideias ou sentimentos, por outro lado (para Brecht) é a expressão física de
relações sociais do
modo como os homens se apresentam diante de outros homens em sociedade.”(GASPAR
NETO, Francisco de Assis – p.2)
² tiras na cabeça: “ (...)‘tira’ no
sentido de policial; um termo de gíria. (...) Partimos do princípio de que as
opressões sofridas pelos cidadãos nas sociedades autoritárias, como as que
conhecemos e nas quais vivemos, produzem estragos mais profundos do que aquelas
reconhecíveis a olho nu. O autoritarismo penetra mesmo nas camadas
inconscientes do indivíduo. O tira sai da caserna - caserna moral e ideológica!
- e penetra na cabeça de cada um de nós.” (BOAL, Augusto – p.267).
Obras de referência:
BOAL, Augusto. Jogos para atores e não atores, 14ª edição, Civilização Brasileira- Rio de Janeiro 2011.
BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas, 11ª edição, Civilização Brasileira- Rio de Janeiro 2011.
CASTRO-POZO. As redes dos oprimidos, 1ª Edição, Perspectiva- São Paulo 2011
GASPAR NETO, Francisco de Assis. O gesto entre dois universos: a noção de gestus no teatro de Bertold Brecht e no cinema dos corpos de Giles Deleuse. - R.cient./FAP, Curitiba, v.4, n.1 p.1-15, jan./jun. 2009.
MONTAGNARI, Eduardo Fernando. Brecht: Estranhamento e aprendizagem. Revista JIOP nº1 – Departamento de Letras Editora –2010.Universidade Estadual de Maringá.
BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas, 11ª edição, Civilização Brasileira- Rio de Janeiro 2011.
CASTRO-POZO. As redes dos oprimidos, 1ª Edição, Perspectiva- São Paulo 2011
GASPAR NETO, Francisco de Assis. O gesto entre dois universos: a noção de gestus no teatro de Bertold Brecht e no cinema dos corpos de Giles Deleuse. - R.cient./FAP, Curitiba, v.4, n.1 p.1-15, jan./jun. 2009.
MONTAGNARI, Eduardo Fernando. Brecht: Estranhamento e aprendizagem. Revista JIOP nº1 – Departamento de Letras Editora –2010.Universidade Estadual de Maringá.