O léxico do corpo humano na fala cotidiana

por Juliana Reis

Você já reparou quantas vezes utilizamos palavras de partes do corpo quando falamos, mesmo quando não queremos falar dele?

Pois é, eu não tinha reparado até iniciar essa pesquisa. Aliás, eu não sei onde estava com a cabeça quando aceitei iniciá-la. Logo na primeira reunião, quando fui apresentada à ideia, fiquei impressionada com a imensidão de possibilidades de estudos que uma língua traz. Fiquei com essa pulga atrás da orelha e... aceitei. Estudar justamente o que passa despercebido na nossa fala parece sem nem cabeça, mas aos poucos fui percebendo que não é bem assim.


E como funciona essa pesquisa?

Um ponto fundamental da pesquisa é que ela utiliza algo chamado Corpus. Um corpus (ou corpo) é um conjunto grande de textos que serve como uma espécie de banco de dados da língua. Como o conjunto é realmente grande, ele á tratado e manipulado por computadores – e, por isso, chamamos de corpus (plural corpora) eletrônico. Um corpus serve para a observação e estudo da língua em uso, isto é, são frases reais (que vêm de jornais, blogs, emails, artigos etc), e não exemplos inventados para fins didáticos. Para a pesquisa sobre as partes do corpo, estamos usando o corpus Floresta, que faz parte do projeto AC/DC. 

O AC/DC é um serviço para a pesquisa linguística, criado e mantido pela Linguateca  e contém atualmente cerca de 800 milhões de palavras. Para saber um pouco mais do AD/DC, veja a página do projeto: http://www.linguateca.pt/ACDC/. E leia aqui uma explicação mais detalhada sobre o que é um corpus. A Floresta faz parte do AC/DC, e tem cerca de seis milhões de palavras.

E por que é interessante usar o corpus para a pesquisa?

Porque o corpus viabiliza o estudo da língua em seu uso natural, espontâneo. Sem a utilização do corpus, a coleta dos dados sobre uma língua depende de informantes ou de obras lexicográficas, o que pode ser insuficiente para uso de pesquisadores.

Uma das coisas que me chamou a atenção foi o grande número de expressões multivocabulares que contém palavras do corpo. Expressões multivocabulares são combinações de palavras cujo sentido não é totalmente transparente, óbvio, sendo dependente de cultura. Ou seja, não podem ser interpretadas - ou traduzidas - ao da letra (ou... “by the foot of the letter”!)

Por exemplo, quando dizemos que vamos dar um puxão de orelha em alguém, ou quando dizemos que alguém fez ouvidos de mercador para o que outro disse, não estamos querendo dizer o que literalmente as frases sugerem e, sim, estamos querendo dizer o que a nossa cultura entende dessas expressões.

E para que serve tudo isso?

Essa pesquisa pode trazer contribuições para os estudantes da língua. Uma delas e, particularmente, a que eu mais gosto, é a contribuição para o ensino de português para estrangeiros. Isto porque outra coisa que eu percebi nesse pouco tempo em que estou pesquisando o léxico do corpo humano, é que boa parte das expressões não estão no dicionário. Se um estrangeiro quiser saber o que significa "sorriso de orelha a orelha", não terá acesso só consultando os dicionários.

Assim, temos a possibilidade de criar um dicionário de expressões, o que ajudaria muito os estrangeiros que querem aprender a nossa língua. Isso facilita porque, desse modo, um estrangeiro pode ter uma linguagem muito mais real e aproximada da que realmente usamos aqui.

Além das expressões, também usamos palavras do corpo para descrever e dar opiniões. Por exemplo, quando chamamos alguém de "bundão", geralmente é com uma conotação negativa, mesmo quando estamos inseridos numa cultura que valoriza tanto essa parte do corpo.

Outro fato curioso é que línguas diferentes têm formas totalmente distintas de se referir às partes do corpo. Há culturas em que a ideia de raciocínio não está alocada na mente como nós, brasileiros, entendemos. Para eles, o pensamento lógico está na barriga!!! 

Fui apresentada a um livro que analisa como diversas línguas e culturas no mundo se referem às partes do corpo. Para os autores, o modo como falantes de uma língua se referem ao corpo revela muito sobre como estes pensam e se expressam. E isso é curioso porque, afinal, todos nós, humanos, temos um mesmo corpo. Seria razoável supor que as palavras para o corpo fossem as mesmas. Mas os russos não têm uma palavra para antebraço, por exemplo. 

Nesse livro, para a minha alegria, há um capítulo sobre como o alemão e o indonésio se referem à palavra "cabeça". A descoberta é que, na grande maioria das vezes, o alemão usa a palavra Kopf (cabeça) para se referir ao local de onde sai o pensamento e o indonésio usa a palavra Kepala (cabeça) para se referir ao que lidera, segundo uma hierarquia. E, pensando no português, usamos “cabeça” nesses dois sentidos: “Quem é o cabeça do grupo?” ou “essa ideia não me sai da cabeça”.

E, depois de ter falado pelos cotovelos, finalizo por aqui... :-)

Juliana Reis, no PET, faz uma pesquisa sobre o léxico do corpo humano na fala cotidiana, orientada pela professora Cláudia Freitas.

Obras de referência:
 "As dificuldades na tradução de idiomatismos", de Claudia Xatara, Huelinton C. Riva e Tatiana Helena C. Rios
"Corpus Annotation: Linguistic Information from Computer Text Corpora" de Roger Garside, Geoffrey Leech e Anthony Mark Mcenery
"O Signo Descontruído", de Rosemary Arrojo (org.)
"HEAD and EYE in German and Indonesian figurative uses", de Poppy Siahaan