Autora: Helena Mussoi
Você, você aí, o que quer? Quer uma
narrativa estranha? Ah, pois sim. Dar-lhe-ei a mais bisonha narrativa de todas
as galáxias, tenho-no dito e feito.
Veio-me o primeiro caldo de consciência bem como que em vala no mar de ressaca, o calabouço escuro enorme e eu pequeno, pequeno, microbiótico (ou a-biótico?) e cego. Mas não conseguia me mexer, estava amarrado a uma corda intransponível, e eu, eu despido de identidade, sem sexo, sem nexo, insígnio.
Eu era e não era. Não, não era. E o que se faz no status quo do não-ser, penso, "cogito, ergo sum"? Errado, está errado! Ser E não ser, eis a questão!
Ninguém me disse por quê, ou como, ou quando. Só me lançaram à cela num relâmpago, eu, que não tinha olhos, que não tinha nexo, que não tinha voz. "Por quê?", indagava a mim mesmo. As paredes, se é que havia paredes, calavam. Se não o houvessem feito, eu não as teria ouvido - como, ora? Não tinha ouvidos! Não tinha olhos, nexo, voz nem sentidos, o ser que não era.
Sabe o que não lhe contei ainda? A prisão, ela diminuía de tamanho, as paredes - se é que havia paredes - foram cerrando no passar dos dias, quiçá dos séculos! Tempo? Nenhuma unidade de tempo por lá. Imagine-se imóbil numa corda, sem sentidos e à deriva, sem o porquê. Morrer? Não me foi apresentada essa opção. Era (mas não era) eu sozinho, claustrofóbico no mais vasto dos espaços (era vasto?), um átomo reles, um paradoxo mergulhado na vala.
As unidades de tempo onde o tempo não havia se enfiavam por sobre as antes vigidas, peças de eternidade transcendental sobrepunham-se às demais (já obsoletas), e eu flutuava tanto quanto me permitia o segmento de corda. Não sei se esse segmento é que foi cedendo conforme a passagem tempestuosa do não-tempo - mas tempo, não obstante -, ou se a mim fora concedido o dom de sentir, pois sentia a corda ruindo, agora eu a comandava o bastante para nadar pelo oceano turbulento.
Pois resolvi me livrar da corda que me fazia prisioneiro. Chutei, esperneei, sacudi todos os músculos que antes não se manifestavam, tanto quanto meu corpinho de micro-a-bio me permitia. Eu chutei as paredes, encontrei as malditas paredes, elas eram grossas e elásticas e a corrente a qual me atrelava se provou corrente, não, não ruía, não cedia, solta, me solta! - não soltou. Ela não me soltou. Ela se enrolou no meu pescoço que nem jiboia, ela me abraçou para mostrar quem era o Mestre. Quis morrer de novo. Não me foi apresentada essa opção.
Tente, tente com força, imaginar-se preso numa cúpula - eu sei que era uma cúpula - escura, dentro da vala, inundada de caldo escasso, e tente com força se livrar da corda que era uma corrente, movendo-se, mas sem se mover, tal como apontou Zenão. Eu quis morrer, sem sequer estar ciente de minha vida - era vida, não era vida? Era e não era vida? -, sem saber por que lutar pela vida-não-vida em liberdade, sequer com a certeza de haver uma liberdade.
Houve o tempo-não-tempo em que a cela não mais me queria, a redoma não comportava mais meu ser-não-ser, e foi-me expulsando o corpo sem nexo, empurrando-me para fora das paredes elásticas. Naquele instante já estava eu acostumado à minha caverna caricaturalmente platônica, não almejava a liberdade, se existisse a liberdade. Eu amava meu cativeiro. Era a minha vala, era o meu caldo. Lutei mais, e quanto mais lutava, mais a corrente cedia, avessa a meu desejo de permanecer encarcerado. Sim, e gritos. Jorravam berros do lado de fora da cúpula, já me havia sido concedido o dom de ouvir. E o de ver - mas o que havia a ser visto? Nada, eu lhe digo. Eu sentia. Imerso na inundação caótica da Caverna, eu sentia. Talvez fosse esse o porquê de ela, minha Caverna, não me querer mais. Mais lhe valia um não-ser despido de identidade, sem sexo e sem nexo. Ela me traiu. Ela me empurrou.
Ela me empurrou, e fui escavando por um túnel tortuoso e estreito, o atrito me esmagava numa sangria inestancável e inescrutável. Mesmo assim ela me empurrou. Com força, a força de mil Aquiles e mil ondas dos mais revoltos dos mares. "Para fora!", ela berrava, a Caverna, "Para fora!". Força, mais força, eu conseguia escutar a Caverna me in-desejando, "Empurra com força!".
Doeu. Rasgou. Esmagou-me o crânio. Esmigalhou-me os miolos. Esgarçou-me como ao bicho morto produto da caça, pronto para ir ao forno. Eu não queria ir ao forno, tampouco sabia o que era forno. Quis morrer - podia até ser enforcado, não era má ideia -. Não me foi apresentada essa opção.
Mas agora, agora eu era. O não-ser era, e o não-tempo se media enquanto tempo nos ponteiros do relógio. Eu via. Não estava mais escuro. Estava claro demais. A luz fora da Caverna me cegou.
E meus sentidos recém-concedidos foram-se desvanecendo num frenesi de cores que eu não sabia que existiam, a corda-corrente apertava, apertava, a jiboia me abraçou, e com ela a tão cobiçada morte. Vi o Ceifador. Ele andava a largos e lerdos passos na minha direção. Parecia um não-sei-o-quê, porque não sabia de nada, não é mesmo? Doeu. Doeu, mas era uma dor deliciosa. Explodir-me eu ia em tantas cores e coisas bonitas, vai ver o caldo era para isso mesmo, para o gozo do a-biótico.
Enfim, ah!, enfim me foi concedido o dom de vociferar. A cobra largara meu pescoço (o que era um pescoço?). Vociferei. Eu quis morrer - mas me fora arrancada dos bracinhos-micróbio essa opção. E, afinal, lá sabia eu o que era um braço! Não sabia de nada! A liberdade existia, e eu a odiava. Tranquei os olhos, porque não queria mais ver. Cortaram a corrente com a facilidade com que se dá uma machadada na jiboia, tão corpulenta e opressora, e tão mole.
O ar rarefeito não era mais o caldo da vala. Era outra coisa. Cortaram a corrente. Eu era livre. Não mais parasita. Não mais a-biótico. Não mais insígnio. Livre. Livre. Livre. Livre. Livre. Livre. Livrelivrelivrelivrelivrelivrelivr-
Veio-me o primeiro caldo de consciência bem como que em vala no mar de ressaca, o calabouço escuro enorme e eu pequeno, pequeno, microbiótico (ou a-biótico?) e cego. Mas não conseguia me mexer, estava amarrado a uma corda intransponível, e eu, eu despido de identidade, sem sexo, sem nexo, insígnio.
Eu era e não era. Não, não era. E o que se faz no status quo do não-ser, penso, "cogito, ergo sum"? Errado, está errado! Ser E não ser, eis a questão!
Ninguém me disse por quê, ou como, ou quando. Só me lançaram à cela num relâmpago, eu, que não tinha olhos, que não tinha nexo, que não tinha voz. "Por quê?", indagava a mim mesmo. As paredes, se é que havia paredes, calavam. Se não o houvessem feito, eu não as teria ouvido - como, ora? Não tinha ouvidos! Não tinha olhos, nexo, voz nem sentidos, o ser que não era.
Sabe o que não lhe contei ainda? A prisão, ela diminuía de tamanho, as paredes - se é que havia paredes - foram cerrando no passar dos dias, quiçá dos séculos! Tempo? Nenhuma unidade de tempo por lá. Imagine-se imóbil numa corda, sem sentidos e à deriva, sem o porquê. Morrer? Não me foi apresentada essa opção. Era (mas não era) eu sozinho, claustrofóbico no mais vasto dos espaços (era vasto?), um átomo reles, um paradoxo mergulhado na vala.
As unidades de tempo onde o tempo não havia se enfiavam por sobre as antes vigidas, peças de eternidade transcendental sobrepunham-se às demais (já obsoletas), e eu flutuava tanto quanto me permitia o segmento de corda. Não sei se esse segmento é que foi cedendo conforme a passagem tempestuosa do não-tempo - mas tempo, não obstante -, ou se a mim fora concedido o dom de sentir, pois sentia a corda ruindo, agora eu a comandava o bastante para nadar pelo oceano turbulento.
Pois resolvi me livrar da corda que me fazia prisioneiro. Chutei, esperneei, sacudi todos os músculos que antes não se manifestavam, tanto quanto meu corpinho de micro-a-bio me permitia. Eu chutei as paredes, encontrei as malditas paredes, elas eram grossas e elásticas e a corrente a qual me atrelava se provou corrente, não, não ruía, não cedia, solta, me solta! - não soltou. Ela não me soltou. Ela se enrolou no meu pescoço que nem jiboia, ela me abraçou para mostrar quem era o Mestre. Quis morrer de novo. Não me foi apresentada essa opção.
Tente, tente com força, imaginar-se preso numa cúpula - eu sei que era uma cúpula - escura, dentro da vala, inundada de caldo escasso, e tente com força se livrar da corda que era uma corrente, movendo-se, mas sem se mover, tal como apontou Zenão. Eu quis morrer, sem sequer estar ciente de minha vida - era vida, não era vida? Era e não era vida? -, sem saber por que lutar pela vida-não-vida em liberdade, sequer com a certeza de haver uma liberdade.
Houve o tempo-não-tempo em que a cela não mais me queria, a redoma não comportava mais meu ser-não-ser, e foi-me expulsando o corpo sem nexo, empurrando-me para fora das paredes elásticas. Naquele instante já estava eu acostumado à minha caverna caricaturalmente platônica, não almejava a liberdade, se existisse a liberdade. Eu amava meu cativeiro. Era a minha vala, era o meu caldo. Lutei mais, e quanto mais lutava, mais a corrente cedia, avessa a meu desejo de permanecer encarcerado. Sim, e gritos. Jorravam berros do lado de fora da cúpula, já me havia sido concedido o dom de ouvir. E o de ver - mas o que havia a ser visto? Nada, eu lhe digo. Eu sentia. Imerso na inundação caótica da Caverna, eu sentia. Talvez fosse esse o porquê de ela, minha Caverna, não me querer mais. Mais lhe valia um não-ser despido de identidade, sem sexo e sem nexo. Ela me traiu. Ela me empurrou.
Ela me empurrou, e fui escavando por um túnel tortuoso e estreito, o atrito me esmagava numa sangria inestancável e inescrutável. Mesmo assim ela me empurrou. Com força, a força de mil Aquiles e mil ondas dos mais revoltos dos mares. "Para fora!", ela berrava, a Caverna, "Para fora!". Força, mais força, eu conseguia escutar a Caverna me in-desejando, "Empurra com força!".
Doeu. Rasgou. Esmagou-me o crânio. Esmigalhou-me os miolos. Esgarçou-me como ao bicho morto produto da caça, pronto para ir ao forno. Eu não queria ir ao forno, tampouco sabia o que era forno. Quis morrer - podia até ser enforcado, não era má ideia -. Não me foi apresentada essa opção.
Mas agora, agora eu era. O não-ser era, e o não-tempo se media enquanto tempo nos ponteiros do relógio. Eu via. Não estava mais escuro. Estava claro demais. A luz fora da Caverna me cegou.
E meus sentidos recém-concedidos foram-se desvanecendo num frenesi de cores que eu não sabia que existiam, a corda-corrente apertava, apertava, a jiboia me abraçou, e com ela a tão cobiçada morte. Vi o Ceifador. Ele andava a largos e lerdos passos na minha direção. Parecia um não-sei-o-quê, porque não sabia de nada, não é mesmo? Doeu. Doeu, mas era uma dor deliciosa. Explodir-me eu ia em tantas cores e coisas bonitas, vai ver o caldo era para isso mesmo, para o gozo do a-biótico.
Enfim, ah!, enfim me foi concedido o dom de vociferar. A cobra largara meu pescoço (o que era um pescoço?). Vociferei. Eu quis morrer - mas me fora arrancada dos bracinhos-micróbio essa opção. E, afinal, lá sabia eu o que era um braço! Não sabia de nada! A liberdade existia, e eu a odiava. Tranquei os olhos, porque não queria mais ver. Cortaram a corrente com a facilidade com que se dá uma machadada na jiboia, tão corpulenta e opressora, e tão mole.
O ar rarefeito não era mais o caldo da vala. Era outra coisa. Cortaram a corrente. Eu era livre. Não mais parasita. Não mais a-biótico. Não mais insígnio. Livre. Livre. Livre. Livre. Livre. Livre. Livrelivrelivrelivrelivrelivrelivr-
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A
luz piscava, ao que voz da parapsicológa cortou o ar, a jiboia mole pairante na
atmosfera, e indagou o paciente em transe.
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E depois?
-
E depois do suplício eu aprendi.
-
Aprendeu o quê?
-
A tomar meu caldo de consciência ex utero.