Da desconstrução

por Aline Miranda

1

Sabrina chegou em casa. Sentou-se na poltrona, tirou os sapatos e bateu a porta. Entrou, tirou os sapatos e atirou-os na poltrona. Entrou já sem sapatos, chutou a porta e deitou no chão. Não sei. Um retorno automático, não-racional e de fato cansado. Cansada do longo dia de trabalho, a longa solidão, a longa espera da vida. Ao menos era o que eu supunha. Pelos dois pequenos retângulos eu escrevia sua vida. Uma personagem vivendo no prédio da frente. Um apartamento ornamentado como a decoração interna de quem o habitava. Cortinas brancas, longas e lisas, lambidas pelo vento fresco a todo instante. Pequenas flores em vasos coloridos dispostos na varanda. Samambaia chorona, dependurada, pingando de suor da chuva. Aquele ambiente era a perfeita tradução de Sabrina. Sabrina que ao certo não lhe sabia o nome, mas o acreditava assim.

Hoje chegou visivelmente cansada, talvez estivesse aborrecida com algo no trabalho, ou o trânsito lento. Deitou-se no chão frio da sala entre livros e quadros. Cartazes de filmes, portarretratos. Folhas de papel soltas e uma outra presa à máquina de escrever. Chegou e deitou-se no chão frio. O tapete levara para lavar. De certo o buscaria amanhã. Ou depois. Ficou por muito tempo ali, e foi tirando o casaco, que dificuldade fazê-lo passar pelos ombros, assim deitada. Seria interessante projetar um casaco novo, diferente, que fosse ligado por fitas, uma na frente e outra atrás, unido apenas assim, duas mangas compridas de jeans. (Já posso imaginar seus dedos finos puxando delicadamente a fita verde e o peito inflando-se em liberdade. Bonito essas unhas rosas assim, com a fita verde). Já tirara a calça também.

Levantou-se e se olhou no espelho. Seu reflexo ali, emoldurado pelos pedacinhos coloridos, azuleijando-a. O rosto como um quebra-cabeça transparente que é preciso tocar para sentir os contornos de cada peça. Fechava os olhos e se via no quadrado. Um chumaço de algodão no lugar do cérebro. Algodão azul. Fofo, podia acariciá-lo, apertá-lo como se faz quando passamos xampu.

Abriu os olhos e estava com as mãos na cabeça.

Fez-lhe um carinho e observou sua face. Passando as mãos suavemente, sentindo cada poro, respirando. Abria e fechava os olhos. Imaginava-se. Sonhava, acordava. Boiando no fundo de uma piscina muito azul, abria os olhos e via somente os raios de sol encontrando a água. Gosto bom de cloro que fica nos dedos. Gostava de chupá-los depois do banho, lhe traziam essa lembrança d’água.

Abriu os olhos e novamente o espelho. De súbito olhou para a janela buscando o sol. Era noite escura mais eu. Ligou o som e foi tomar banho. Não sei se me viu.


2

O banheiro de Sabrina não era tão público, digamos assim, como sua sala e seu quarto. Havia somente uma janela, daquelas pequenas, onde eu conseguia ver o xampu apoiado no vidro. Era bem na direção do meu banheiro. Chegamos, algumas vezes, a tomarmos banho juntas. Esse sábado, de madrugada, vi essa luz acender. Como eu já estava há muito enrolando, fiz disso uma motivação para ir também ao chuveiro. Vi, entorpecida, quando suas mãos surgiram molhadas em busca do frasco. Demorava-se para tirar toda a espuma dos cabelos, eu via sua testa, e tinha a visão de seu rosto inteiro. Olhos fechados, boca um pouco aberta, respirando, ora enchendo-se de água, então cuspindo-a e o novo líquido a escorrer por seu corpo nu. Às vezes a ajudava a se ensaboar, passava a esponja com cuidado em suas costas, umas pequenas sardas travessas. A água esfriou de repente e despertando me vi sozinha. A luz na janela da frente já havia se apagado.


3

Confesso que passei um dia inteiro em casa a esperá-la. Algumas vezes. Como quando acompanhamos nossa novela preferida. Mas eu preferia a televisão da vida real. Aquela personagem era tão próxima a mim. Mais próxima que muitos dos poucos amigos com quem me relaciono. Talvez até mais próxima do que meu eu de mim.

Gostava de vê-la aos domingos, depois da feira. Chegava carregada de sacolas e perfumes. Adoramos cheiro-verde. E aipim. Pela manhã, cozida com manteiga e sal. Sabrina cozinhava pouco, mas intensamente. Fazer comida para si, preparar os ingredientes, esperar assar enquanto dança. Meu prato preferido foi bolo de chocolate com vestido branco ao tango. O cheiro do forno a envolvia da cozinha para a sala e seu corpo rodopiava de alegria. Era muito elegante e esguia. Uma bailarina não realizada. Talvez seus sonhos não coubessem em seu corpo. Talvez dançando se encontrasse. Cozinhando, escrevendo, deitando no chão gelado e atirando os sapatos. Sendo sonhada por mim.


4

Recebia poucas visitas. Eu e ela. Em verdade a visitava todos os dias. Assim logo que o sol saía pela manhã. Sabrina tinha o hábito de dormir com as janelas abertas em noites quentes. Cobria-se com a luz do luar. E eu mal podia dormir. Nenhum sonho poderia alcançar a beleza daquela imagem, a cena preferida do meu filme mais querido. Seu corpo, dormindo, sonhava energias que me despertavam. Eu acordava, a olhava, e voltava a dormir até ser despertada por ela outra vez. E assim ao longo da noite. Durante o horário de verão.

Hoje levantei bem cedo, não queria continuar o pesadelo e acordei. Despertei dos sonhos de outra vida. Evitei a janela, não abri as cortinas. Mas de tarde, na impetuosa tarde, a chuva veio e com ela o frio, o vento, o medo. Tudo voava e precisei fechar os vidros. Escancarada em minha janela, braços abertos, peito erguido, olhei de frente e vi. Sabrina resgatando sua cortina e estendendo os braços, abaixando o vidro. Estava de batom, perfumada e bolsa pendurada. Sorriu. Para mim? Pegou as chaves na mesa e foi em direção à porta. Não vá, pensei. Sabrina!, gritei. Mas fez que não ouviu.



"Da desconstrução", de Aline Miranda, ficou em 3º lugar na categoria Prosa no IV Prêmio Paulo Britto de Prosa e Poesia.