Breve narrativa da miséria humana
Autor: Rodrigo Elmas
Era noite de um domingo, e não por algum tipo de intenção
estilística acrescento que estava a ler o Inferno de Dante quando subitamente
bateram à porta de meu quarto. Uma ambulância à porta de minha casa às 21 horas
de um domingo? Não desci. Aguardei no andar em que estava, e permaneci tentando
– sem sucesso – ouvir o que uns homens a meu pai diziam. Era o tio Hédio que
havia passado mal, e se encontrava hospitalizado.
A família não se abalou... era um bêbedo, valdevinos que vagava por
aí a prestar pequenos serviços, reparos de casa; não constituíra família nem
estudara. Vinham bater à nossa porta a fim de trazer-nos enfado. Quem
acompanharia tal criatura em um hospital? Acompanharia? Sim. Malgrado fosse um
ébrio, e ainda que a nossa ambição emergente nos levasse a ignorar familiares menores
e distantes, havia uma ambulância em nossa casa! O que faríamos?
Pois bem, por Deus! Que espécie de ambulância vai a uma casa avisar
que alguém está hospitalizado? Decerto teria morrido. E quem arcaria com o
custo de enterrar o de cujus?
Não importa. Alguém deveria fazê-lo. E é nesse instante que os
homens da casa se unem numa macabra empresa que se forma a cada morte de um
familiar, e se dissolve assim que a última espátula de massa põe fim ao
processo que demarca em uma parede recheada por mortos o mundo deles e o dos
que ainda sob o sol respiram. Para tal empresa foram três os designados: eu,
papai e meu cunhado.
Chegando ao local azado e prestadas as devidas apresentações fomos conduzidos
por uma senhora gentil à sala onde descobri o que faz uma assistente social.
Aquela devia pertencer a uma classe especial de assistentes sociais; tinha
olhos fundos e baços, sombreados por olheiras que a distavam de nós, e que
quase nos faziam crer ser ela o ente que controla o fluxo de almas naquele
recinto.
Tal efeito se desvanecera à medida que o diálogo avançava e as
explicações eram dadas. Sim, havia morrido, morrera enfartado às 17:15 horas
precisamente (com o concurso da cirrose), e seu corpinho – nunca
esquecerei esse eufemismo – estava nas dependências locais aguardando sua
eterna morada.
Havia certa pressa, pois não havia câmara frigorífica no local,
mas, ao mesmo tempo, pouco se poderia fazer, uma vez que o cartório estava
fechado, mas no submundo que orbita a morte sempre se pode preparar algo – e
foi então que decidimos conhecer a via do enterro grátis. Malditos! Somos
malditos sovinas, sim. Fingimo-nos de pobres, obtivemos o carimbo de pobres em
um papel encardido da secretaria de saúde e rumamos para a velha funerária onde
um dia os cliente passivo seremos nós.
Deixamos o cunhado em casa; e eu e meu pai, que não nos falávamos
havia algumas semanas, tivemos de dialogar. Era noite profunda, e me recordo de
ter repreendido meu pai por cogitar passar por uma suposta cirurgia milagrosa e
ainda experimental que o poderia curar do diabetes. Ora qual! Falar em cirurgia
num momento de morte! Ao menos estávamos conversando. Era um avanço.
A funerária ficava no segundo piso, sobre as capelas onde algumas
vezes eu velara alguns parentes, e subir as escadas me transportou a dez anos
antes, à ocasião da morte de minha avó, quando meu primo me desafiara a entrar
na sala de exposição das urnas. Ainda me recordo dele acenando ao fundo da
sala, terrível, me chamando; o cheiro macabro, definitivo, inefável e
inconfundível da madeira feral. Medo.
Quando a gente cresce o tamanho do mundo muda. A mesma sala das
urnas agora era uma pequena sala onde os caixões se espremiam. De fora se os
via por uma porta de vidro; e a primeira urna era a do meu tio-avô. Sobre cada
tampa havia um papel com o preço em letras garrafais, terríveis, como se
gritassem seus preços, causando pavor.
Sobre a urna de meu tio não havia preço: era urna doação:
a dos desvalidos, dos pobres, e a que os servidores da prefeitura odeiam
fornecer não sei porquê. Talvez nesses casos não recebessem propina per
capta.
Fomos atendidos por um homem sonolento que trabalhava num recinto e
que ao fundo se podia ver os trapos do que um dia fora um colchonete, e que
fazia as vezes de cama. Tomamos ciência de algumas cobranças inesperadas;
violava-se a premissa principal: gastar nada com aquele vagabundo – pois que já
gastávamos com a gasolina, e era muito!
Por acaso ou destino, não importa, meu pai encontrara tio Hédio na
rua havia cerca de um mês. Como o mesmo vivia de pensão em pensão, forneceu um
novo endereço, na rua São João, centro de Niterói. Meu pai, sempre esquecido,
anotou tal em um papel assim que chegou em casa, guardando tal lembrete numa
gaveta qualquer.
Foi um golpe de sorte. Precisávamos de um documento do morto e,
quiçá, oxalá Deus permitisse, algum dinheiro para algum eventual gasto ou para
nosso entretenimento mesmo. Miseráveis!
Estacionamos em frente à pensão. Era quase madrugada quando
adentrávamos aquela vila ladeada por um velho sobrado português. Desatamos a
corrente que fingia trancar o portão e avançamos lentamente por sobre aquele
chão antigo de pedras coloniais. Perguntamos a um senhor pelo quarto do Sr.
Hédio. Tínhamos um combinado: jamais dizer que morrera. Se indagados,
deveríamos dizer apenas ser parentes e que buscávamos roupas, que o mesmo
estava internado, e só. Ora, se revelássemos a morte poderiam cobrar de nós qualquer
débito com a pensão!
Sim, senti pena ao ver o lugar onde meu tio passara seus últimos
dias. Era um quarto sufocante, com uma cama que se apoiava sobre caixas de
cerveja, e o chão estava molhado, rescendia urina. O odor era nauseante. Atrás
da porta havia um par de calças e, em seus bolsos – nova sorte -, duzentos
reais. Foi como se tivéssemos ganho a noite. Logo achamos seus documentos,
encostamos a porta e saímos como que fugindo. Não achávamos que pilhávamos um
morto. Apenas fazíamos justiça e obtínhamos a paga pelo aborrecimento do
enterro. Canalhas!
Já em casa, combinávamos o que deveria ser feito no dia seguinte.
Papai considerou o dia da morte de seu tio: péssimo dia para se morrer! Um
domingo! Como se se pudesse escolher o dia em que se morre. O enterro deveria
ser providenciado impreterivelmente no dia seguinte, pois que, importa lembrar,
não havia geladeira ou câmara frigorífica no local. Teria de ser numa
segunda-feira – dia em que todos (menos eu) trabalhavam. Era o meu momento de
ser o “homem da casa” e vestir, transportar e levar à sepultura um parente com
quem muito pouco convivi – e sobre o qual muito (mal) ouvi.
Dormi mal, é claro. Todas noites que antecedem um funeral são
noites ruins. Tenta-se imaginar a aparência do morto, seu semblante; ou até, de
modo quase doentio, como Edgar Allan Poe, adivinhar se o rosto penderá mais
para a direita ou para a esquerda; se o rosto estará encovado, como de costume,
e se os olhos estarão abertos ou cerrados.
Recebi cem reais para pagar alguém que transportaria o corpo, e
mais cinquenta reais de “brinde” pela tarefa. O Sr. Paulo me cobrou cinquenta
reais, e assim lucrei cem reais com a morte de meu tio. Maldito!
Dirigimo-nos ao local onde estava o corpo. Fomos recebidos com a
alegria de quem precisa abrir espaço para novos ocupantes. Lembro-me de naquele
dia expandir meu léxico, aprendendo que frigorífico e câmara mortuária (ou
frigorífica) eram o mesmo que morgue. Est’última indicava onde meu tio estava,
podendo posteriormente entender a origem da palavra morgue e talvez até seu uso
naquele local, sendo, quiçá, uma forma de fazer com que pessoas passassem pelo
local sem saber o que havia ali dentro.
Lembro de ali tomar ciência de que morgue era uma sala de entulhos;
onde cadeiras e televisores velhos e armários e macas enferrujadas aguardavam
descarte com eventuais corpinhos embalados para a viagem.
Ao adentrar o recinto, nada estranhei. Somente ao olhar para a
esquerda foi que me dei conta de um corpo amortalhado, mas não tive tempo para
pensar muito. Homens – exatamente o que eu tentava ser ali – já colocavam suas
luvas e começavam a desfazer o pacote em que meu tio estava. Veio a roupa, veio
a urna. Junto com a urna veio uma barata, e após mais esse susto veio a
percepção de que aquela urna era de madeira e papelão. Que miséria! Que
tristeza! Também eu terminaria meus dias assim? Mas, se assim fosse, que
diferença faria à minhalma jazer ali?
Não havia tempo para reflexões ou tristeza. Levamos tio Hédio ao
cemitério. Os coveiros almoçavam. Teríamos de esperar. Optamos por voltar e
almoçar em casa. Tio Hédio ficou lá, na entrada do cemitério, sob o sol
inclemente. Quem roubaria um defunto velho?
Voltamos e o enterramos no alto da colina em que os pobres sem
identidade jazem. Terra fofa e granulada, vegetação imperial e vasta. Solo
adubado por corpos sofridos como o de meu tio. Nunca esquecerei que após
algumas pás de terra a tampa de papelão do feretrum se rompeu, expondo
parte da fronte de meu tio. Miséria das misérias!
Bem aventurados os mortos, pois que alcançam a graça de do convívio
com os vivos se apartar!
* * *