O açougueiro


por Judite Cypreste

Tinha aprendido com o tio falecido o ofício: pegava a peça com a mão esquerda enquanto a direita já empunhava a machadinha, sempre afiada. Cortava primeiro as laterais, onde havia mais músculos. Em seguida, com o caminho livre até o centro, o sangue quente escorrendo pela bancada de mármore, metia a mão e arrancava o osso maior. Dalí em diante era mais fácil. Ia cortando em pedaços mais ou menos iguais, e embrulhando em saquinhos plásticos. Os saquinhos eram então pesados na balança adulterada (O que são 100 gramas a menos?) e empilhados na vitrine congelada do pequeno açougue do português.

Para o galego era quase de graça o funcionário: pagava-o com um café com leite e pão na manteiga, um prato de comida e alguns pedaços de carne de 2ª para ele levar para a mãe, uma senhora de 63 anos, mas que achava que tinha 19. De lambuja, ainda oferecia a experiência no serviço, uma grande reputação no bairro e uma promessa de viagem a Braga, onde trabalharia numa futura (e utópica) filial daquele açougue de esquina.
O jovem açougueiro, no entanto, precisava ganhar mais. A sua mãe viu em uma revistinha dessas de R$ 1,99, que uma máquina de fazer chinelos bordados com miçangas podia render até 10 mil por mês. 10 MIL! Imagina que já no primeiro mês eles poderiam cobrir o preço da máquina, comprar outra e ainda faturar muito mais? Era garantido que até o final do ano pudessem mudar de bairro, comprar um carro, fazer um cruzeiro e ter um poodle de estimação.

A ocasião para o dinheiro rápido veio mais cedo do que o açougueiro pensava. Numa tarde, enquanto misturava gordura com acém que ia ser moído, o português foi até o fornecedor para revolver uns assuntos. Como alguém que espera a oportunidade certa, um senhor, todo engravatado, coisa rara naquele bairro, entrou no estabelecimento procurando o jovem artista dos cortes de carne.

- Você é o jovem açougueiro com maestria na arte de desossar, cortar e estripar carnes de diversos tipos, daqui deste bairro?

O jovem respondeu um tímido sim. Não havia entendido a maior parte da pergunta do engravatado, mas assimilou as palavras “jovem”, “açougueiro” e “carnes” e entendeu que aquele homem procurava por ele.

- Então tenho uma proposta de emprego para você.

O trabalho era bem simples, mas sujo. O engravatado era advogado de uma organização de matadores de aluguel do bairro vizinho. De acordo com ele, estavam tendo problemas para esconder tantos indícios depois de feitos os trabalhos, o que poderia dar problemas futuros com a lei. Ouviram falar da maestria do jovem cortador de carnes do outro bairro. Daí em diante foram feitas as negociações.

O português teve que se virar sozinho. O jovem apareceu uma semana depois dizendo que não dava mais. O gajo até disse que podia pagar a passagem do moço, mas este estava decidido: iria sair dali e seguir em uma carreira que pagava o quanto ele merecia pelo seu duro trabalho.

Não demorou mais que um mês, e os corpos, previamente embrulhados em papel alumínio e envoltos em grandes sacos pretos de lixo, foram entregues de táxi na casa do açougueiro. O taxista, um russo que não falava bem o português, não sabia o que carregava e tampouco queria saber: era bem pago para isso e fazer contas era uma língua universal que ele conhecia bem.

Com a vinda do primeiro pagamento, a mãe conseguiu realizar o seu desejo. E como o dinheiro era mais do que ela precisava comprou duas máquinas logo de uma vez, para o lucro ser maior, de acordo com a revistinha. Não sabia bem o que o filho fazia no novo serviço, mas quando este, que lhe poupou de alguns detalhes mais inescrupulosos, contou que foi contratado por uma organização bastante eficiente e importante do outro bairro, ela sentiu orgulho da educação que dera a ele e agradeceu a memória do irmão falecido por ter ensinado a profissão ao sobrinho.

Um acaso no entanto surgiu. Era certo que o jovem carniceiro não tinha problemas no que estava fazendo: era só fingir que se tratava de uma pata de boi, ou um lombo de carneiro e fazer o serviço. Mas o volume do que resultava do trabalho era grande, e estava sendo conservado na geladeira de sua própria casa. O congelador estava agora abarrotado e a mãe por várias vezes se confundia e quase acabava assando a tal “carne proibida” da qual o filho havia alertado para ela não mexer.

A primeira saída de início foi procurar o advogado e contar que os indícios, mesmo cortados, estavam começando a acumular e poderiam levantar suspeitas da tal lei.

- A parte do corte e do armazenamento estão sob sua responsabilidade. Está no contrato que você assinou na cláusula referente aos serviços que irão ser prestados.

O jovem, que não sabia ler, teve que se contentar com as palavras do advogado, que deveria ter razão no que estava falando. Ele era um homem bastante estudado e ainda se vestia de terno e gravata, então deveria ter algum crédito de que falava a verdade.

A máquina de chinelos também não vingou: não demorou muito para a mãe descobrir que chinelos com miçangas não poderiam ser vendidos pelo preço que a revistinha de 1,99 sugeria. Assim, eles acabaram sendo repassados para as comadres e para as irmãs da igreja pelo preço de custo. Agora a casa da família do jovem carniceiro estava com restos de carne para todos os lados e duas máquinas de fazer chinelos encostadas.

A mãe, no entanto, tinha um espírito empreendedor. Cansada das peças de carne espalhadas até mesmo debaixo de sua cama e do cheiro de podre que começa a exalar de algumas partes da casa, ignorou o pedido do filho de não mexer em nada e pensou no que havia lido na última revistinha culinária que comprara. Em dois dias, ela já havia preparado 500 salgadinhos que variavam em rissoles, coxinhas, empanados e empadinhas. Todos com destino certo e pagamento adiantado.

O filho, que andava muito ocupado em negociações com o dono de um terreno baldio com o intuito de fazer a desova das peças, demorou a constatar o que a mãe havia feito. Conseguiu, contudo, parar o empreendimento da mãe antes dela fechar negócio e ser a fornecedora oficial dos salgadinhos da cantina do único colégio particular da região.

A mãe, que teve outro grande empreendimento de sucesso fracassado, comentou com a mulher do português, que era uma velha amiga, o quanto o filho, apesar de estar num ótimo emprego, havia mudado muito desde de que saíra do açougue, e agora criara o hábito de estocar carnes em casa, colocando até mesmo nos vasos de plantas dizendo que era um ótimo adubo natural.

A esposa do português que não tinha fama de ser uma pessoa reservada, foi logo contar ao marido como andava seu ex-funcionário. O galego, que andava de mal a pior depois que perdera seu pupilo e agora vivia a trancos e barrancos com o fornecedor (- 6,99 O KILO DA MOELA? - É a crise portuga!) teve uma ideia e procurou seu ex-açougueiro para lhe propor um negócio.


Depois de 6 meses, o jovem carniceiro, virou um jovem fornecedor. Depois de acertar as contas, ele e seu ex-patrão agora estavam em uma sociedade. O português finalmente conseguiu abrir a filial em Braga, na Rua do Souto, a principal da cidade. A mãe estava orgulhosa do desempenho do filho, e ajeitava as últimas questões para um novo investimento: uma loja ao lado do açougue do filho, onde ela venderia suas exclusivas criações nos mais variados pontos-cruz, que ela aprendera no último manual da Trico & Crochê.