"Minha formação": como ser um gauche
por Camila Ferreira
Caro leitor,
Este é um pequeno resumo do trabalho desenvolvido por uma inquietude
curiosa, mas dedicada. Eis aqui a colheita de alguns apontamentos sobre a
crítica literária que, há aproximadamente um século, busca meios de conceber
cuidado e apreço ao olhar sobre a literatura cujo prestígio esteve limitado a
um círculo europeu muito restrito. Para compreender alguns caminhos percorridos
por ela, minha inquieta curiosidade teve como grandes companheiros os escritos
dos senhores Silviano Santiago, que primeiro a despertou, e Carlos Drummond de
Andrade, como grande referência da magnitude literária produzida em terras
tupiniquins à maneira citada pelo senhor Santiago. Posteriormente, os estudos
do senhor John Gledson ofereceram-se como guias dessa pequena aventura. Já o
senhor Frederico Oliveira Coelho, meu (des)orientador – como carinhosamente o
digo –, deu seu consentimento, apoio e ouvidos. É, caro leitor, como orientador
só poderia este me animar e conduzir as minhas reflexões a um caminho menos
impressionista, como cabe a uma estudante de Letras, mas baseado em métodos
científicos e acadêmicos para a construção desse simplório trabalho, afinal,
não vivemos o tempo do senhor Álvaro Lins. São esses entusiastas do universo
literário que me incitaram a pensar sobre a formação de um cânone oriundo de
países como o nosso, ex-colônia europeia, e outros que agregaram seus saberes
aos meus pensamento.
Talvez você esteja pensando que essa bisbilhotice seja tola ou descabida, mas lhe adianto que a Literatura Comparada teve seu embrião nas viagens do século XIX e, nas primeiras décadas, já era uma cadeira nas universidades da França, lecionada pelos senhores Abel Villemain, Jean-Jacques Ampère e Philarète Chasles. Contudo, esses tinham como perspectiva investigar “a influência de pensamento sobre pensamento, a maneira pela qual os povos transformaram-se mutuamente, [...] permitiu-se finalmente ser penetrado [...] submetendo-se a influências que receberam como presente e todos, por sua vez, emitindo novas imprevistas influências para o futuro!”[1]. Porém, esse campo de estudos se limitaria a países como Alemanha, Espanha, França, Itália e Inglaterra. Pobre Portugal, nem citado como Europa fora. Os franceses verificavam a influência entre os países mencionados, ignorando os demais que se erguiam quanto nações independentes de suas matrizes coloniais. Desse modo, como dissera o senhor Chasles, as influências seriam presentes trocados, porém, entre as nações do mesmo continente.
A polaridade da literatura comparada que tendia à perspectiva americana ou francesa, a partir dos anos de 1950, foi sendo ramificada pelos teóricos do Leste europeu. Realizaram-se alguns congressos ao longo desta década e da seguinte, nos quais os críticos questionavam a metodologia de análise das obras que se orientavam pela aproximação dos processos literários e pela semelhança entre elas. Muitos teóricos adotavam a perspectiva marxista, abandonando a visão determinista do trajeto histórico, mas considerando os caminhos sociais existentes, seus gêneros e suas formas literárias. Victor Zhirmunsky, ao aprofundar os estudos comparatistas adotando tal perspectiva, propôs a tese das “correntes de convergência”. Nela, o papel daquele que recebe o presente da matriz é fundamental, pois implica na não aceitação da influência para preencher alguma lacuna, mas sim no encontro de correntes de pensamentos que se complementam, conversam e se relacionam. Essas relações poderiam provir de semelhanças sociais e do processo de desenvolvimento da literatura, ou ainda do contato cultural e internacional entre os povos.
Acontece, caro leitor, que o senhor que aguçou a minha curiosidade estava lecionando literatura fora do nosso país. Estava ele pela América do Norte, enquanto, no Brasil, Afrânio Coutinho ganhava a queda de braço que iniciara, em 1948, com o crítico de rodapé Álvaro Lins. Vivendo também por um período nos Estados Unidos e, desde lá, inspirado pelo estruturalismo, Afrânio escrevia artigos criticando os métodos impressionistas utilizados pela crítica de rodapé brasileira. Foi criando terreno até retornar ao país e fundar, já na década de
Contrário a muitos estudos que elogiam merecidamente a obra drummondiana, voltei-me para Carlos Drummond de Andrade ainda no princípio de sua vida poética, entre os anos de 1920 e 1930. Nesse período, Drummond já sabia que as palavras o aguardavam em estado de dicionário, mas buscava constituir sua própria poética. Ao longo deste período, o gauche viveu diversas experiências que foram importantes para que ele experimentasse e duvidasse de tudo, desde da poesia dita pura ao modernismo. De
A primeira língua estrangeira aprendida por Carlos Drummond fora o francês. Ele também traduzira inúmeras obras de autores franceses para a língua portuguesa. A primeira escola com que o poeta teve contato foi o simbolismo francês. Nos anos de
Em 1923, no ensaio "Sobre a arte moderna", o poeta mostra todo o seu entusiasmo e ânsia pela novidade. Acredita no grupo modernista, pois vê nele a mudança e a possibilidade de uma tradição. Entretanto, não abandona e nem faz críticas duras ao penumbrismo dos poetas brasileiros. Somente após o encontro de 1924, é que Carlos Drummond percebe no simbolismo “um sorriso de mofo e melancolia”[2]. Apesar da crítica, o poeta ainda se mostrava excelente e rigoroso aluno de Moreyra. Era simpático ao modernismo, mas desconfiava de tanta liberdade, da ausência de convenções e da simpatia que deveria nutrir pelo ser brasileiro. É sabido que Drummond tinha muito mais gosto pela cultura europeia, em especial pela francesa, que pelas importações fraudulentas. Embora toda a desconfiança, alertava-o o amigo Mário de Andrade que, ainda que não definida, Carlos Drummond só poderia se compreender quanto poeta se olhasse para o histórico da poesia de seu país.
O nacionalismo exacerbado incomodava Drummond. O modernismo, ao passo que era a possibilidade de uma tradição, não se construía em bases sólidas, devido à ausência de convenções estilísticas e, principalmente, aos idealismos e a inocência indianista de Oswaldo de Andrade que forjavam a cultura, condição primordial para a existência da poesia. A distorção da realidade era o mesmo que regar em demasiado a semente de uma tradição. Drummond gostaria de escrever sobre a Bahia, mas nunca fora lá. Por essa razão, ainda em 1924, denomina a poesia do período como neorromântica. Sabia ele que a poesia não se deslocaria de um movimento a outro num curto espaço de tempo. Era preciso deixar o relógio andar para que não só as formas se modificassem, mas também o pensamento vazio de que o poeta acusou o senhor Graça Aranha. A arte não deveria seguir sentimentos vagos, mas ter uma dimensão mais humana. Drummond teve muitas dúvidas não porque cria em nada, mas porque buscou constituir-se poeta e, para fazê-lo, era necessário olhar para trás sem que se esquecesse de caminhar para frente. Quando da morte de Anatole France, o poeta disse que esse já tinha morrido há mais de vinte anos, pois era um poeta atrasado. Por essa razão, discordava do cabralismo e da liberdade estilística que, segundo ele, era uma forma de atender às expectativas do período moderno. Seguir uma escola ou uma religião, como fizera Rimbaud, era limitar a poesia e, como nos disse Drummond, seu serviço era à poesia e não a uma escola específica. Por essa consciência, por esse pensar maduro que, talvez, os poemas de Alguma Poesia apresentem alguns dos seus versos mais populares.
Sabemos, caríssimo, que muitos poemas contidos nesse livro não datam do ano de sua publicação, mas sim do período em que muito lhe preocupou a formação de sua poética. A fragmentação de Alguma poesia reflete os questionamentos expostos aqui. Com exceção de Álvaro Moreyra, o poeta não aceitou de maneira passiva suas influências. Quis compreendê-las, lutou contra elas para depois adotá-las ou ter a convicção de sua recusa. Não sendo irônico e não tendo ritmo mais não, como citou em “Também já fui brasileiro”, Carlos Drummond de Andrade traçou seu percurso “entre-lugar”, esquivando-se de rimas pomposas, fazendo uso de formas clássicas e de versos livres. Ele escolheu não tratar a poesia como algo etéreo. A arte, quando trabalhada conscientemente, poderia tocar a alma humana de maneira útil e bela. Ainda que fazendo uso de uma escrita simples, porém não menos densa e reflexiva, sua poesia desritmada foi e continua a ser canonizada pelo sacerdócio literário universal.
Obras de referência:
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Completas. São Paulo: Itatiaia, 1987.
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Civilização Brasileira, 1970.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião (10 livros de poesia). 3ª
ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.
FILHO, Rodrigo Octavio. Simbolismo e penumbrismo. Rio de Janeiro:
Livraria São José, 1970.
GLEDSON, John. Influências e impasses: Drummond e alguns
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NITRINI, Sandra. Literatura comparada: história, teoria e crítica. 3ª
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ROCHA, João Cezar de Castro. Crítica Literária: em busca do tempo
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