O processo

por Sonia Carvalho


EXMO. SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA 2012ª VARA DE FAMÍLIA DA COMARCA DA CAPITAL 


AÇÃO DE CONVERSÃO DE RELACIONAMENTO INDEFINIDO EM RELAÇÃO ÍNTIMA E SEXUAL C/C TUTELA ANTECIPADA DE OBRIGAÇÃO DE ABRAÇAR E SE DEIXAR SER TOCADO


que LUÍSA PRADO, morena, sensual, residente e domiciliada na Rua do Alecrim, nesta cidade, advogando em causa própria, com escritório à Rua de Arroios, Centro, onde recebe citações/intimações, vem propor em face de BASÍLIO LÍQUENS, separado, atraente, residente e domiciliado em endereço ignorado pela Autora, com fulcro no desejo e na paixão, e consoante os relevantes fundamentos de fato e de Direito a seguir deduzidos. 



I – DOS FATOS

O desejo que a Autora nutre pelo Réu nasceu desde que ela o olhou pela primeira vez, muito embora, à época, não estivesse consciente disso, e foi sendo fomentado pela ternura ao longo do convívio profissional mantido entre eles.

De início, a Autora sentiu-se perturbada ao se descobrir ardente e cálida em presença do Réu, até que não tentou mais disfarçar e assumiu toda a intensidade de sua paixão, passando a assediá-lo explicitamente. Ressalte-se que, embora seu corpo diga sim, o Réu insiste em declarar que não pode aceitar as carícias da Autora aduzindo, a cada vez, as mais variadas e disparatadas razões. Vossa Excelência pode bem avaliar os ônus físicos e emocionais suportados por ela, eis que suas tentativas de acarinhá-lo são rechaçadas, de forma ambígua, é verdade, mas com frequência enlouquecedora. 


II – O PERFIL PSICOLÓGICO DA AUTORA E DO RÉU E AS CONDIÇÕES EMOCIONAIS ENVOLVIDAS


Para que Vossa Excelência, de plano, possa aferir as condições emocionais e psicológicas da Autora, informa ela que veio de muito longe, do buraco fundo do mundo, e que na longa e sinuosa estrada que percorreu foi chicoteada pela vida, escalavrou as mãos, mentiu, enganou, manipulou e traiu. E é sobrevivente. E sobreviver durante tanto tempo cria uma teia de cicatrizes. Se não há cuidado, as marcas se rompem, voltam a sangrar.

Contudo, ama bichos e gente, desde que não atrapalhem sua solidão, é peregrina na vida, procura o Sagrado nas coisas e nas pessoas, é avida e inquieta, quer o máximo de sabor possível, e é capaz de iras e ternuras abissais. É livre. E forte o bastante para pagar o preço da liberdade, que reconquista todo dia. Às vezes, se amiúda em aterradora vulnerabilidade. Na maior parte do tempo, se sente estrangeira no mundo. E acredita em êxtase terreno, quando corpo e alma se unem na pequena morte.

Quanto ao Réu, também ele foi chibateado pela vida, muitas e muitas vezes. Passeou no inferno. Viu seus sonhos se desfazerem, virar pó. Tal qual a Autora, mentiu, manipulou, traiu. E também é sobrevivente. Possui marcas na alma. Suas cicatrizes se percebem no olhar melancólico e no meio sorriso que, às vezes, ilumina seu rosto.

É contido, solitário, inadequado, inseguro, às vezes mentiroso. Preconceituoso por criação e por medo. Mas, também é generoso e amigo. É espirituoso, tem raciocínio rápido, possui senso de humor afiado. E ousa mostrar quem é. É fisicamente atraente, másculo, meio selvagem, possui cabelos macios, e seu cheiro de homem é embriagador. Enfim, um convite às mais delirantes carícias!

E, se não bastasse isso, para exacerbar os sentimentos da Autora, o Réu não deixou morrer o menino que mora nele. Menino esse que a Autora viu, pela primeira vez, comprando revistas de tirinhas numa banca de jornal. E nunca mais esqueceu!

Uma das desculpas que o Réu apresentou para se furtar aos carinhos da Autora é de que receia magoá-la, parecendo desconhecer o fenômeno da projeção, processo inconsciente de inversão, que consiste em transferir para o outro nossos próprios medos e desejos, para melhor lidar com o que nos assusta. Às vezes, também afirma que não sente atração pela Autora, declaração essa que não resiste ao fato inegável de que, ao se aproximar dela, é sempre traído pelo próprio corpo. Outras vezes, declara como impedimento o fato da Autora manter relacionamento estável com outro homem, argumento esse que, a toda prova, é falacioso, eis que não existe compromisso maior do que aquele com nossos próprios desejos e emoções.

Por conta dessa constante negação a Autora até tentou se afastar, e passou a demorar o olhar nos colegas de trabalho, nos transeuntes, nos mutuários, nos contribuintes, nos adimplentes, e até nos inadimplentes. Debalde! Não conseguiu! O Réu é o único que ela deseja. Ele dói em seu corpo, em sua alma! E, por conta disso, a Autora transita entre o céu e o inferno, sensação conhecida por todos que já foram capturados pela paixão.

Assim, só lhe tem restado aguardar ansiosamente os dias da semana em que pode estar com o Réu, quando então ele lhe permite cheirar seu pescoço, acarinhar seus cabelos e, por alguns instantes, roçar os seios no seu peito, fatos esses que comprovam sua vontade de se perder no corpo da Autora.

Sublinhe-se que, por conta das feridas emocionais herdadas de sua sofrida história pessoal, o Réu é cauteloso, desconfiado, temeroso de se entregar à emoção, recebendo com um misto de susto e anseio as tentativas de carícias mais ousadas da Autora. Que, na verdade, é um tantinho fora do estereótipo da mulher que espera a iniciativa masculina, tão do agrado dos homens em geral. Por outro lado, também ela é inexperiente no trato das emoções. Com efeito, foi sempre ardorosa praticante do comportamento sedutor, desprovido de envolvimento afetivo, usufruindo somente do embate ardente dos corpos. 

Mas, com o Réu é diferente! Na verdade, o misto de tesão e ternura que a Autora sente em presença do Réu tem o efeito de engolfá-la, inibindo seu raciocínio lógico, restringindo suas palavras, paralisando suas mãos. Ele é o seu homem! Aquele a quem quer se entregar e também proteger. Mas, quando chega ao lado dele, ela treme, sua razão se embaralha, e quase desmaia pedindo proteção. E ele a acalma e pacifica, às vezes com um olhar mais terno, uma palavra dita num tom de voz intenso, ou apenas em silêncio ao seu lado, aguardando que cessem suas lágrimas.

Importante esclarecer que a Autora não pretende coabitar com o Réu, mas tão apenas se roçar nele, despentear seu cabelo, cheirar, mordiscar, beijar, e lamber também. E se ele se sentir só, tão só de quase querer morrer, colher sua cabeça no colo, acalentá-lo, sem nada perguntar ou dizer.

E quando ele a quiser, por prazer, cansaço, ou tristeza, para enganar a solidão ou o desejo de morte, ir ao seu encontro e entregar-se inteira, seja no chão, atrás de uma porta, no vão de qualquer escada, na esquina de uma rua deserta, e até mesmo na cama. Ajoelhada aos seus pés, ter prazer com seu prazer. Sentir-se rainha, em posição de escrava. Sua fêmea no “durante”, abrigo e paz no cansaço do “depois.”

Mas, teme a Autora que o Réu continue a se afastar cada vez mais dos próprios sentimentos, e mais, a se distanciar dela, movimento inconsciente de quem, para sobreviver, vive negando a vida.

III - DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA BUSCA DA FELICIDADE

Expostos os fundamentos fáticos da presente ação, todos ancorados no desejo e na paixão, o suporte jurídico finca-se no Princípio Constitucional da Busca da Felicidade. Pleiteia a Autora tão somente o direito de ser e fazer feliz o Réu, eis que bem sabe não existir lei, forma, ordem ou regra em matéria de volúpia e prazer. Somente a vivência lenta, gradual e prazerosa do contato dos corpos, para viabilizar a parceria amorosa, o gozo, o êxtase.

Isso posto, e considerando que a Autora sente no corpo e nos olhos do Réu tudo que ele resiste em declarar que deseja, é a presente para requerer que V. Exª se digne a:

- deferir, in limine litis, a Tutela Antecipada à Autora, determinando que o Réu, de imediato, a abrace bem apertado e longamente, e se deixe ser acarinhado, beijado e tocado, para que ela não enlouqueça de tanto esperar.

A seguir, mandar citar o Réu para contestar a presente ação (acredita a Autora que ele não o fará!), sob pena de revelia, e acompanha-la até a final sentença e sua execução, em que pede a procedência dos seguintes pedidos:

- determinar ao Réu que aceite o fato de que a vida é apenas um “susto” e passa tão rápido que constitui um sacrilégio que ele e a Autora não gozem de todo o prazer que cada um pode proporcionar ao outro. Em consequência, que o Réu não mais evite as súplicas e apelos da Autora, e passe a se perder nos seus braços e abraços;

- condenar o Réu nas verbas da sucumbência, inclusive honorários advocatícios pagos in natura, que consistirão em conceder à Autora a recompensa, a prenda imensa de muitos e muitos dengos, afagos, e outros aconchegos mais.

Requer todos os meios de prova em Direito admitidos, especialmente a imprescindível e deliciosa prova oral, determinando, a seguir, o depoimento pessoal do Réu, valendo seu silêncio como confissão de que a Autora é a mulher capaz de concretizar suas fantasias e desejos mais loucos e secretos.

Nestes Termos
Pede Deferimento
Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2012.


LUÍSA PRADO
OAB/RJ Nº 00.000



"O processo", de Sonia Carvalho, foi o texto vencedor da categoria Destaque dos jurados no IV Prêmio Paulo Britto de Prosa e Poesia.