Autora: Natalie Lima
Rosario
Vai
e fica. A parte dela que andou pela Paraguay, pela San Luis e pela Mitre, que
comeu papas españolas encharcadas de
manteiga – isso desaparecerá aqui. Quanto às ilhas, permanecerá nelas, o rio cor
de doce de leite, e ainda assim bonito, islas
flotantes. Não são grandes coisas, mas coisas interessantíssimas.
No
barco, sente o tapete de água sob o corpo – nunca sem sapatos, pois sua pele é
a superfície que aos mosquitos encanta chupar. Quer salvar ao menos os pés do
alcance desses vampiros pequeninos e bárbaros. Capazes de picar, diversas
vezes, sua panturrilha esquerda por cima da calça de linho, deixam finos rastros
de sangue entre o tecido e a pele.
Indiferente
a tudo isso, o barco bate contra a água, teimando, dizendo que sim, que segue
em frente apesar de. Ao passar por algumas das ilhas, diminui a velocidade para
que os outros passageiros possam mergulhar. Ela não. Seu corpo não quer
imersões, vai ver que é medo de afundar e não ter o que levar de si para o
Brasil. Só deixou que a tocassem o vento, o sol, a superfície da água e a
barqueira, que a ajudou a entrar e sair da lancha para turistas. Os mosquitos
não contam porque o que fizeram não foi tocar, mas furar e beber. Porém, graças
a eles a mulher fica um pouco mais na Argentina, seu sangue na barriga de
insetos rosarinos, bichos que moram e dormem e procriam em ilhas flutuantes. O
tapete de água, eles não o temem. Ela também não. Sentiu-o sob os tênis que
usava, que sentiram a madeira do barquinho, que sentiu a água amuralhada e mole
na horizontal, que sentiu, sob a superfície, as correntes e os peixes, que
sentiram a profundidade e o fundo arenoso, que sentiram, junto com os peixes
que só nadam no fundo, algo ainda mais fundo. Não se sabe o que é, mas isso, o
fundo do fundo, respondeu aos peixes, à areia e à profundidade, que responderam
aos outros peixes, que responderam às correntes, que responderam à superfície,
que respondeu ao casco da lancha, ou do barquinho, chame-o como quiser, o
barquinho tão pequeno e frágil de tanto transportar turistas, ele respondeu às
solas de borracha, que fizeram de escuta um par de pés.
44, rue de l’Amiral Hamelin
O
maior clichê sobre Proust é seu leito de morte, sua foto de morto no leito de
morte, naquele quarto em que ele deveria sufocar e, ao que parece, escrever
durante a noite. Mas e se ela: uma mulher encharcada com água gelada do Sena e que
de cabelos molhados quase se pareça com um rapaz; e se ela entrar no quarto, sem
explicação alguma, e depois estender uma mão a Proust, e ele aceitar essa
oferta, e a janela do quarto se abrir e começar a aumentar de tamanho, e o dia
estiver agradável, e houver um jardim lá fora, e a janela se abrir mais e mais
e mais, a ponto de se tornar um buraco na parede do quarto que dá para o jardim
do edifício de Proust, e ele e a mulher encharcada que se parece com um rapaz
caminharem por esse jardim, e apanharem sol, e toparem com aquelas bandeiras
tibetanas coloridas que, quando tocadas pelo vento úmido, espalham seus mantras
e seus fluidos, e Proust respirar fundo, com pulmões infiltrados, tentando ler
o que está escrito nas bandeiras, e ver ali borrado com água do rio o seu
próprio texto?
Caetité
Ela nunca foi a Caetité, não sabe quais
horizontes se consegue avistar por lá. Ainda assim é preciso, o sertão. Ir até.
Não por sua lonjura – mesmo da própria Bahia Caetité se afasta –, quando sim
por sua aridez inexata. É dessa maneira que a terra quase vira areia, navalha
invisível de vento seco. Quem sabe ali a sensação – aguda e, como sempre, ainda
sem nome, quase sem forma – estanque; no melhor dos casos, se transmute,
abrindo sobre si mesma um sulco, uma fenda quente.
É possível, no
entanto, que haja de fato pouco a ver em Caetité – o que, no fim das contas,
nem importa. Muito mais interessante e capital é saber o
que fazer quando uma vez lá: em que partes farejar os rastros de uma bisavó
índia cujo rosto nunca encarou e cujo nome desconhece, em qual chão verter as
águas de rio armazenadas em garrafas PET de quinhentos mililitros.
Ela mesma as
colheu, essas águas, sem a intenção prévia de derramá-las sobre alguma terra
brasileira. São duas: a mais antiga e quase acidental vem da superfície de um
rio argentino cor de doce de leite chamado Paraná; a outra,
verde-cinza-negra-clara, vem do fundo gelado e mítico a que chamam La Seine.
Sumirão rapidamente, uma vez fora de suas respectivas garrafas. Vão se misturar
ao chão, vão penetrá-lo com tal gentileza, fazer nele caminhos, para depois
pouca coisa ou quase nada delas restar no visível. Imperceptíveis, mas ainda
assim lá. É isso um destino. Quantos.
A importância
desse gesto em Caetité, onde ninguém a conhece – exceto, justamente e com
esforço, a terra. Imperiosa, semiárida, cheia de ossos que já não existem, hoje
transformados em pó e revirados intensamente por formigas, ventanias, chuvas e
leitos baixos, amassados com parcimônia por gado de corte ou, no pior dos
casos, pelas retroescavadeiras das Indústrias Nucleares do Brasil. Então aí,
mesmo aí, algo da bisavó jê, um pouco dela para molhar com água de rio
estrangeiro e cheirar depois.
Não
sozinha, para que sozinha, Caetité tem mais de cinquenta e três mil habitantes,
diz o senso do IBGE. Então serão mais de cinquenta e três mil somados a uma,
essa-ela, e vai ver aparecem as que desejem águas estrangeiras derramar também,
águas de viagem e de sonho, fluxo que não é outro, mas coisa de fora que logo
se junta e se espalha e repousa.