The lovers


Autor: A. B. Tinelli


aprender uma língua ela
dizia lendo W Blake
na varanda é
um ato solitário

in the forests of the night
cheguei a vestir
um terno cinza e no altar
declamei W Blake

e bem imaginei um Mundo
em um pequeno grão um Céu
em uma flor selvagem pegar
o Infinito com as mãos prender
no Agora a Eternidade

mas invisível um véu
sobre seu rosto impedia
o enlaço amoroso como

numa tela de magritte

meu amor todo caminho
é ela dizia
também um exílio

dor e alegria em um mesmo tecido
(eis o caminho de um verso batido)

uma coisa ela não disse

in the forests of the night
sob toda dor
e todo pinheiro

brilham os olhos de um tigre

____________


Úmido tríptico


Autora: Natalie Lima


Rosario
Vai e fica. A parte dela que andou pela Paraguay, pela San Luis e pela Mitre, que comeu papas españolas encharcadas de manteiga – isso desaparecerá aqui. Quanto às ilhas, permanecerá nelas, o rio cor de doce de leite, e ainda assim bonito, islas flotantes. Não são grandes coisas, mas coisas interessantíssimas.
No barco, sente o tapete de água sob o corpo – nunca sem sapatos, pois sua pele é a superfície que aos mosquitos encanta chupar. Quer salvar ao menos os pés do alcance desses vampiros pequeninos e bárbaros. Capazes de picar, diversas vezes, sua panturrilha esquerda por cima da calça de linho, deixam finos rastros de sangue entre o tecido e a pele.
Indiferente a tudo isso, o barco bate contra a água, teimando, dizendo que sim, que segue em frente apesar de. Ao passar por algumas das ilhas, diminui a velocidade para que os outros passageiros possam mergulhar. Ela não. Seu corpo não quer imersões, vai ver que é medo de afundar e não ter o que levar de si para o Brasil. Só deixou que a tocassem o vento, o sol, a superfície da água e a barqueira, que a ajudou a entrar e sair da lancha para turistas. Os mosquitos não contam porque o que fizeram não foi tocar, mas furar e beber. Porém, graças a eles a mulher fica um pouco mais na Argentina, seu sangue na barriga de insetos rosarinos, bichos que moram e dormem e procriam em ilhas flutuantes. O tapete de água, eles não o temem. Ela também não. Sentiu-o sob os tênis que usava, que sentiram a madeira do barquinho, que sentiu a água amuralhada e mole na horizontal, que sentiu, sob a superfície, as correntes e os peixes, que sentiram a profundidade e o fundo arenoso, que sentiram, junto com os peixes que só nadam no fundo, algo ainda mais fundo. Não se sabe o que é, mas isso, o fundo do fundo, respondeu aos peixes, à areia e à profundidade, que responderam aos outros peixes, que responderam às correntes, que responderam à superfície, que respondeu ao casco da lancha, ou do barquinho, chame-o como quiser, o barquinho tão pequeno e frágil de tanto transportar turistas, ele respondeu às solas de borracha, que fizeram de escuta um par de pés.



44, rue de l’Amiral Hamelin
O maior clichê sobre Proust é seu leito de morte, sua foto de morto no leito de morte, naquele quarto em que ele deveria sufocar e, ao que parece, escrever durante a noite. Mas e se ela: uma mulher encharcada com água gelada do Sena e que de cabelos molhados quase se pareça com um rapaz; e se ela entrar no quarto, sem explicação alguma, e depois estender uma mão a Proust, e ele aceitar essa oferta, e a janela do quarto se abrir e começar a aumentar de tamanho, e o dia estiver agradável, e houver um jardim lá fora, e a janela se abrir mais e mais e mais, a ponto de se tornar um buraco na parede do quarto que dá para o jardim do edifício de Proust, e ele e a mulher encharcada que se parece com um rapaz caminharem por esse jardim, e apanharem sol, e toparem com aquelas bandeiras tibetanas coloridas que, quando tocadas pelo vento úmido, espalham seus mantras e seus fluidos, e Proust respirar fundo, com pulmões infiltrados, tentando ler o que está escrito nas bandeiras, e ver ali borrado com água do rio o seu próprio texto?



Caetité
Ela nunca foi a Caetité, não sabe quais horizontes se consegue avistar por lá. Ainda assim é preciso, o sertão. Ir até. Não por sua lonjura – mesmo da própria Bahia Caetité se afasta –, quando sim por sua aridez inexata. É dessa maneira que a terra quase vira areia, navalha invisível de vento seco. Quem sabe ali a sensação – aguda e, como sempre, ainda sem nome, quase sem forma – estanque; no melhor dos casos, se transmute, abrindo sobre si mesma um sulco, uma fenda quente.
É possível, no entanto, que haja de fato pouco a ver em Caetité – o que, no fim das contas, nem importa. Muito mais interessante e capital é saber o que fazer quando uma vez lá: em que partes farejar os rastros de uma bisavó índia cujo rosto nunca encarou e cujo nome desconhece, em qual chão verter as águas de rio armazenadas em garrafas PET de quinhentos mililitros.
Ela mesma as colheu, essas águas, sem a intenção prévia de derramá-las sobre alguma terra brasileira. São duas: a mais antiga e quase acidental vem da superfície de um rio argentino cor de doce de leite chamado Paraná; a outra, verde-cinza-negra-clara, vem do fundo gelado e mítico a que chamam La Seine. Sumirão rapidamente, uma vez fora de suas respectivas garrafas. Vão se misturar ao chão, vão penetrá-lo com tal gentileza, fazer nele caminhos, para depois pouca coisa ou quase nada delas restar no visível. Imperceptíveis, mas ainda assim lá. É isso um destino. Quantos.
A importância desse gesto em Caetité, onde ninguém a conhece – exceto, justamente e com esforço, a terra. Imperiosa, semiárida, cheia de ossos que já não existem, hoje transformados em pó e revirados intensamente por formigas, ventanias, chuvas e leitos baixos, amassados com parcimônia por gado de corte ou, no pior dos casos, pelas retroescavadeiras das Indústrias Nucleares do Brasil. Então aí, mesmo aí, algo da bisavó jê, um pouco dela para molhar com água de rio estrangeiro e cheirar depois.
Não sozinha, para que sozinha, Caetité tem mais de cinquenta e três mil habitantes, diz o senso do IBGE. Então serão mais de cinquenta e três mil somados a uma, essa-ela, e vai ver aparecem as que desejem águas estrangeiras derramar também, águas de viagem e de sonho, fluxo que não é outro, mas coisa de fora que logo se junta e se espalha e repousa.

Fusão


Autor: Leoni


o início da história
já não importa
a essa altura
a mistura

de você em
mim do meu
rosto nos seus
olhos dos seus

sonhos nos meus
braços dos meus
risos nos seus
ossos do que é nosso

no que é seu
por osmose meu
é nossa solução
inseparável já

não há substância
pura os átomos
embaralharam as
órbitas para além

do ponto de qualquer
fissura nossas
línguas mis-
(tri)turaram línguas

que já não falamos
apagamos portas pistas
fronteiras resíduos
de Tordesilhas

importa agora
o holofote da nossa
estrela de estilhaços
atiçando o incêndio

desse estardalhaço
de alegrias – de
que importaria agora
o início da história?

Nósocorro


Autor: Mateus Baldi


           O Nazista não era nazista coisa nenhuma, mas era assim que a gente chamava – porque era loiro; porque era alto; porque era forte e numa tarde de sol disse que ia descer a porrada no Arnaldo, que era judeu. Semana passada nos reencontramos num jantar e ele estava bem diferente – acima do peso e com um maço de cigarros no bolso. O Nazista e eu saímos para fumar quase que ao mesmo tempo e, justamente por não saber que o Nazista era o Nazista, pedi um isqueiro e ele deu e sorriu e disse que me conhecia de algum lugar, que tinha certeza de já ter visto meus olhos em algum lugar, aí foi a minha vez de rir e dizer Você diz isso pra todas?, e ele desviou o olhar para os carros rasgando a rua lá embaixo, Eu não digo isso pra ninguém, respondeu, a vida é muito curta pra gente ficar bancando o disco arranhado – e foi então que eu ri. Ele não entendeu, com razão, e eu pedi
              - Desculpa.
            e continuei, falei que era engraçado porque em dois mil e dezesseis ninguém mais fala disco arranhado, que certa vez minha filha soltou um escangalhar e eu me acabei de rir no sofá.  Ele sorriu. Disse que eu era uma mulher *****. Assenti. Eu definitivamente era uma mulher *****.  “Me conta de você”, pedi. “Eu não tenho nada de interessante, só tô aqui pra não perder o emprego.” “Ah, é?” “É.” “Eu também.” “Você trabalha pra ()?” “Não, trabalho na ##, mas minha filha quer se formar em |||||| e o único jeito disso acontecer é eu ganhar um aumento...” “...que você pretende conseguir vindo nesse jantar e bajulando seu chefe.” “Como você sabe?” “É o que todos nós, animais de escritório, fazemos”, ele respondeu dando de ombros. 

          Acabamos trocando telefones e marcando um jantar para a sexta-feira seguinte. Sushi. Em dois mil e dezesseis as pessoas amam sushi no primeiro encontro. Pedimos uma canoa gigante e quase morremos de rir quando engasguei com o wasabi. Depois de a $$$$ chegar, como a chuva ainda não havia parado de cair, o Nazista sugeriu que fôssemos para a casa dele: (hoje não) (por quê?) (porque é o primeiro encontro, não sou uma mulher >>) (tudo bem, quer que eu te deixe em casa?) (eu disse que não queria dar pra você, não que não queria um bom fim de noite): nos beijamos e ficamos dez minutos pensando no que fazer e eu disse: (uma vez quase fui pro Horto de noite, só que o fusquinha do meu namorado quebrou na ladeira e tivemos que voltar de reboque): o Nazista riu e disse: (ok, entendi, vamos pro Horto) (não, tá doido?, tá chovendo, foi só um comentário besta) (não, sério, agora eu quero ir pro Horto). Fomos.
           Havia uma árvore no meio do asfalto. O Nazista desviou lento, quase parando, e pude ver dois gatinhos se abrigando sob os galhos retorcidos. Confesso que fiquei com pena. Ele estacionou atrás de um Ford velho e perguntou se eu estava bem – fiquei com dó dos gatos – respondi, mas ele não entendeu muito bem – os gatinhos sob a árvore – continuei –, você não viu? – Não vi gato nenhum, mas se você quiser a gente volta – Não precisa. – Tem certeza? – Absoluta, ele disse dando um tapinha no volante. Nos beijamos por um tempo e então perguntei
 - Sua mulher morreu de quê?
           e ele teve um sobressalto.
           - Desculpa.
         - Não, que isso, não tem problema falar dessas coisas. É só que... você é uma mulher muito ~~~~.
           - Já me disseram isso. É um defeito grave. Prometo consertar.
          Rimos. O Nazista disse que a esposa tinha morrido de câncer e perguntou se eu era sempre assim, severa comigo mesma: Só quando acho que estou fazendo algo de errado. E quando você acha que está fazendo algo de errado? Sempre, respondi enquanto baixava a cabeça e sorria com o canto da boca, o batom borrado.
         [eu sei que você disse que não é uma mulher >>, mas não tem muita utilidade a gente ficar aqui, nessa chuva. Lá em casa podia ser melhor. Juro que não te encosto a mão. É só uma questão de conforto mesmo.]
           Abri a porta do carro e desci.
       A chuva me pegou de jeito e ensopou minha @@. O Nazista olhou pela janela, estupefato, e por um segundo desviou o olhar para os meus peitos grudados no tecido.
            - Vem! – gritei. – Tá uma delícia.
            Um trovão rugiu lá fora.
            O Nazista abriu a porta e pisou numa poça.

  Nos falamos quase todos os dias. Ao contrário de mim, ele é uma pessoa <, quiçá um pouco <<<. Anteontem conversei com minha filha pelo Skype e ela disse que eu deveria dar uma chance; que o namoro com o escocês estava uma merda; que todo mundo deveria aproveitar ao máximo o início de qualquer relacionamento que se promete duradouro. Perguntei onde ela tinha aprendido a falar bonito desse jeito – aproveitar ao máximo o início de qualquer relacionamento que se promete duradouro – e ela riu, as bochechinhas coradas, e me mandou deixar de palhaçada, Tu parece meu pai falando. Comentei que tinha chances de conseguir um aumento, que meu chefe adorou minha presença no jantar e que a Celeste ia se aposentar no fim do ano – a vaga tinha noventa e nove por cento de chances de ser minha.
  Ficamos conversando até o dia raiar.

  Hoje acordei com o interfone TOCANDO. O porteiro disse que era da floricultura, quis saber se era para deixar subir. Agora eu sou a Dona Silvia da Cobertura 01, os porteiros se importam com a minha segurança. E o Nazista ainda existe. E manda flores lindas. Agradeci com uma mensagem fofinha.  
           Boa viagem, ele respondeu.

        Sim eu quero largar tudo e ficar o dia de hoje & amanhã & depois com ele meu nazista mas não dá para adiar essa viagem de trabalho porque a celeste vai se aposentar no fim do ano e apesar de ser dona silvia da cobertura 01 eu não posso desperdiçar esse tipo de coisa porque a cobertura 01 não quer dizer nada ela foi herdada eu não tenho grana além da que mando pra sofia sobreviver no exterior então vou ter que ir pra São Paulo aquela cidade horrorosa onde só chove e não tem nem um horto pra gente se esconder e namorar e tomar chuva em paz só o horizonte que mais parece uma carreira de cocaína estendida debaixo das nuvens e fazendo um desabafo a cocaína está cara eu não contei pro nazista né mas tenho outro vício além do cigarro mas é muito pouco quase nunca e se ainda não contei é porque não quero estragar tudo pelo menos não agora em que estamos nos conhecendo tão bem e ele parece estar tanto na minha quanto eu estou na dele porque a gente minha filha quem disse precisa valorizar as coisas boas da vida antes que elas vão embora não não foi nada disso que ela disse e eu nem sei se o verbo ir está conjugado corretamente mas o que importa né afinal de contas sou uma mulher apaixonada e as pessoas apaixonadas podem tudo inclusive dar uns tequinhos quando se sentem solitárias porque não adianta nada nazista jantar  cigarro sushi leblon horto ipanema gávea jardim botânico rio de janeiro são paulo sofia silvia se a gente não puder ter uns prazeres escusos once in a while que é pra poder sofrer em paz sem ninguém perturbar a paciência mas o que eu queria mesmo lá no fundo da minha alma com todo o meu amor não era paulo são janeiro de rio botânico jardim gávea ipanema horto leblon sushi cigarro jantar coisa nenhuma e sim meu nazista que só chamo assim com esse apelido horrível porque o nome de batismo é pior ainda mas obviamente ele não sabe que chamo de nazista já que pessoalmente só chamo de IIIIIII enfim eu queria agora mesmo pular desse avião maldito e dizer que vim para ficar com ele e que mesmo não sendo uma mulher >> hoje eu vou ser >>>>>> e vamos fazer muito    :-)    e também                  que é pra ninguém botar defeito e vamos ser felizes para sempre só por hoje até o sol cair bem laranja quase tangerina por cima dos copans e masps afinal do dia de amanhã ninguém sabe e se esse avião cair ai meu deus eu só queria pai nosso que está no céu falar pro nazista santificado seja vosso nome que eu desci desse avião venha a nósocorro para ficar com ele e antes que pudessem me impedir cair em tentação eu já estava no táxi sorrindo feliz da vida e não há nada que ele possa fazer quanto a isso porque a besteira já tá feita agora estou aqui meu amor livrai-nos do mal e tudo está de volta ao normal, amém Sim.
            “Mas e a viagem, Silvia, meu deus do céu, você tá doida? O que você vai fazer?”
            “Perder o voo.” 

Autora: Gyzelle Góes


ainda criança o vento se aliava
às corridas pelo bairro
crescido
tão agilmente
as pedrinhas por volta do parque
no centro da rua
criavam folia junto aos pés
que pouco firmavam estadia ao chão
tamanha era vontade do ser
tímida buscava um buraco
onde se esconder
fazia disso brincadeira
e me sentia muito inadequada
quando surgia à luz de olhos arregalados
que moravam dentro do que
se fazia em mim
tinha estórias pra contar enfim
alugava diário cor lilás sabia
só página vazia suportaria
tanta infância
me descobri sozinha
levava as mãos em suspense
até locais onde a pele frisava em eriço
tamanha ousadia
o corpo como trilha desfrutava
da curiosidade dos gestos
e se revelava
um país das maravilhas
como lia nos contos apanhados
na estante do meu pai
toda vez quis buscar estrela subindo
no banco da cozinha corria
subia
e não tem luz
antes ou no instante que narro estória
nem agora
mas a infância
permanece ainda aqui
no verso na astúcia dos dedos
pendurada no quadro na mesa da sala
em tudo que escrevo