Construções de gênero e violência na mídia


por Gabriela Novellino


Orientadora: Adriana Nóbrega


De acordo com Paul Simpson e Adrea Mayr, atitudes, opiniões e crenças hegemônicas são construídas através do discurso e de uma forma que faz essas crenças parecerem naturais e senso comum. É necessário perceber que o conceito de hegemonia como poder é vastamente operado através da linguagem. Os grupos culturais dominantes fazem com que os outros grupos consintam à sua dominação através de discursos que naturalizam seu status de poder. Também de acordo com esses autores, qualquer discurso é entrelaçado nas ideologias daqueles que o produzem, por isso a análise linguística de textos pode nos ajudar a compreender como a ideologia está presente na linguagem e perceber como as práticas textuais refletem e sustentam as ideologias dominantes. 

Dentro desses discursos de disseminação de poder, um dos mais difundidos atualmente é o discurso midiático. Nesse texto, veremos como a mídia lida com a regulamentação das categorias de gênero e a cultura de culpabilização da vítima violentada através dessa perspectiva de que as atitudes hegemônicas e as ideologias dominantes são construídas através do discurso. 

Dizer que gênero é algo socialmente construído pode ser evidente para algumas pessoas e ainda um absurdo para outras. Aqueles que acreditam que gênero é algo natural dirão que existem diferenças biológicas entre homens e mulheres e que isso não pode ser negado. Afinal, seus órgãos sexuais, seus hormônios e seus cromossomos são diferentes, portanto seria evidente que possuíssem comportamentos diferentes também. Enquanto isso, aqueles mais familiarizados com as teorias de gênero responderiam que essas diferenças dizem respeito apenas ao sexo de um indivíduo, e não a seu gênero, que são coisas diferentes.

Na realidade, é muito difícil medir em até que ponto o gênero seria influenciado por características biológicas, sociais, ou ambas. Como vivemos em sociedade, é complicado especular como seria o comportamento de um indivíduo “masculino” ou “feminino” se não passasse pelo processo de inserção na sociedade, como todos passamos. Afinal, até mesmo quando nascemos a primeira coisa que dizem para nós é “É menino!” ou “É menina!”. Desde os primeiros instantes de nossas vidas somos forçados a nos encaixar em uma categoria social de gênero e, de preferência, mantê-la pelo resto da vida, nos comportando de acordo com aquilo que é socialmente esperado daquele gênero imposto.

Existem diversos mecanismos sociais que contribuem para a manutenção dos estereótipos de gêneros. Esses mecanismos não apenas representam e reproduzem as ideologias de gênero presentes em uma dada sociedade, como também contribuem para a criação e perpetuação dessas ideologias. Um desses mecanismos de regulamentação das categorias de gênero, e talvez um dos mais poderosos, é a mídia. 

De acordo com Pedro Paulo Pereira, a mídia faz parte do que é chamado de tecnologia de gênero: “tecnologia que constrói determinadas imagens de ‘homens’ e ‘mulheres’, e que atua na produção do masculino e do feminino”. Até mesmo textos jornalísticos, que geralmente são considerados objetivos e imparciais, colaboram para a construção dessas imagens, seja implícita-, explícita-, consciente- ou inconscientemente. 

Nos últimos tempos, um assunto que tem chamado muito a minha atenção por aparecer frequentemente em diversos meios midiáticos, de forma explícita ou não, é a culpabilização da vítima feminina em situação de estupro ou violência. Para aqueles não familiarizados com o termo, culpabilização da vítima diz respeito ao fato de se culpar mulheres e crianças pela violência (sexual, física, psicológica, etc) que é cometida contra elas. Isso acontece constantemente, por exemplo, ao se dizer que uma mulher estuprada que usava roupas curtas e justas estava “pedindo” pela agressão sexual. É importante ressaltar que esse processo de culpabilização não é apenas algo feito com a vítima por outras pessoas, mas também acontece com a própria vítima em relação a si mesma, por se culpar pela ocorrência do ato de agressão. Pode parecer absurdo para alguns, mas tal atitude ainda é muito mais comum do que se imagina.

Mas que papel a mídia exerce nesse processo de culpabilização da vítima? 

O modo como a mídia representa as mulheres violentadas através da linguagem, tanto verbal quanto não verbal, ajuda a perpetuar tal processo e a construir a identidade dessas mulheres. O que eu tenho observado na mídia é uma caracterização das mulheres violentadas como vítimas passivas e indefesas que não possuem a força, seja física, psicológica, ou emocional, para resistir a violência. Desse modo, as mulheres que entram em contato com essa mídia podem se sentir desestimuladas a lutar contra a violência que acontece ou pode vir a acontecer contra ela. Além disso, a mídia também exerce forte influência na perpetuação da cultura do estupro, ou seja, ela pode normalizar, justificar, tolerar e até consentir a prática do estupro, criando uma cultura em que a violência sexual é algo comum. Isso pode ser facilmente observado nas redes sociais ou nos espaços para comentários em artigos de jornais online.

Motivada por todos esses fatores, entre outros, decidi pesquisar mais a fundo sobre a representação da mulher violentada na mídia, tanto em artigos jornalísticos, quanto nas redes sociais e nas campanhas publicitárias contra a violência doméstica ou sexual. Aliás, no início de minha pesquisa me dei conta de que não lembrava ter visto em lugar algum campanhas publicitárias que procurassem conscientizar a população a respeito desses problemas. E como será possível melhorar essa situação se não há campanhas visíveis de combate à violência sexual e doméstica?

Em minha pesquisa, pretendo analisar diversos textos de jornais, de redes sociais e de campanhas publicitárias, com o objetivo de investigar mais profundamente como a mulher violentada é representada. Para isso, utilizarei a teoria Linguística Sistêmico-Funcional de Halliday e a Análise Crítica do Discurso de Fairclough. A primeira possui uma perspectiva de língua completamente atrelada ao seu contexto cultural e situacional, permitindo uma análise linguística que busca explicar as escolhas lexicogramaticais de um texto dentro de seu contexto. Já a Análise Crítica do Discurso me permitirá investigar especificamente quais estratégias representacionais estão sendo utilizadas no texto, de forma a criar uma identidade das mulheres violentadas.

Espero que com a minha análise seja possível compreender melhor de que formas a mídia influencia a criação da identidade da mulher brasileira violentada.


Obras de referência:
ALMEIDA, Danielle Barbosa Lins de. “Beyond the playground: the representation of reality in fashion dolls’ advertisements”. Linguagem em (Dis)curso, v. 8, n. 2, p. 203-228, 2008.
MACHIN, David; MAYR, Andrea. “Representing people: language and identity”. IN: How to do critical discourse analysis. London: Sage, 2012.
PEREIRA, Pedro Paulo Gomes. “Violência e tecnologias de gênero: tempo e espaço nos jornais”. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, 17 (2), p. 485-505, 2009.
PARENTE, Eriza de Oliveira; NASCIMENTO, Rosana Oliveira do; VIEIRA, Luiza Jane Eyre de Souza. “Enfrentamento da violência doméstica por um grupo de mulheres após a denúncia”. Revista de Estudos Feminista, Florianópolis, 17 (2), p. 445-465, 2009.
SIMPSON, Paul; MAYR, Andrea. Language and Power: a resource book for students. New York: Routledge, 2010.

Vídeos relacionados ao tema:
Violence against women - it's a men's issue: http://www.youtube.com/watch?v=KTvSfeCRxe8
It's your fault: http://www.youtube.com/watch?v=3n6lksv6vzw
Then way we've been talking about gettin' it on is turnin' me off: http://www.upworthy.com/the-way-weve-been-talking-about-gettin-it-on-is-turnin-me-off-2