Adaptação em coautoria com a censura

por João Miguel

Nas últimas décadas, as teorias de adaptação têm se tornado uma vertente cada vez mais forte dos estudos de literatura comparada. A tendência tem sido estudar adaptações cada vez menos como obras derivativas, e mais como obras independentes, livres da necessidade de serem religiosamente fiéis aos “textos originais”. Em retrospecto, parece fácil ilustrar a presença longeva das práticas de adaptação nas formas de arte. Já se tornou lugar-comum recuperar as adaptações praticadas por Shakespeare, ou, voltando ainda mais no tempo, as apropriações da mitologia grega praticadas por Homero. Hoje, qualquer pessoa munida da sabedoria popular, frente à descoberta de que uma obra remete a outra, entoa o famoso “nada se cria, tudo se copia”, frase pronta que, se por um lado não contribui para a desmistificação dos conceitos simplistas que cingem a prática da adaptação, por outro constata o fato de que as adaptações são reconhecidamente onipresentes em nossa cultura. 

A popularização do cinema ao longo do século XX, que muito se alimentou de adaptações, tornou difícil a dissociação da ideia de que adaptar é transpor para a tela grande. Se na época de Shakespeare as adaptações com transposição de mídias eram feitas da música para o teatro, ou da literatura para a música, por exemplo, hoje em dia o termo remete quase que imediatamente à transposição de alguma outra mídia para o cinema. Todo livro, peça, história em quadrinhos, vídeo game ou até mesmo linha de bonecos de ação de sucesso parece prometer um futuro promissor na telona. Hoje, as adaptações são parte essencial do nosso dia-a-dia de consumidores de cinema.

De fato, o cinema chamou atenção ao longo do século passado. Nos Estados Unidos da década de 20, a patrulha puritanesca do “moralmente aceitável” ultrapassava a barreira da vida real, onde a Lei Seca se fazia presente, e alcançava a indústria cinematográfica. A crescente popularização do cinema, que passara a ter som, representava um perigo para qualquer defensor dos bons costumes, já que o alcance dos filmes poderia passar qualquer tipo de mensagem para um número muito grande de consumidores. Depois de várias pequenas controvérsias envolvendo a qualidade moral de alguns filmes a partir do fim da década de 20, finalmente nos anos 30 a Legião da Decência, uma organização católica preocupada em combater a imoralidade em Hollywood, cobrou dos grandes estúdios uma postura mais firme e o Hays Code foi instaurado como principal regulador do que poderia e do que não poderia ser veiculado nos cinemas, fiscalizando a indústria cinematográfica por mais de trinta anos.

O primeiro dos princípios gerais listados pelo código dizia que não deveria ser produzido nenhum filme que pudesse baixar os padrões morais daqueles que assistissem a ele e, portanto, as audiências não poderiam ser expostas ao crime, à ilegalidade, à maldade ou ao pecado. Em seguida era listada uma sorte de proibições que restringiam desde cenas de sexo a abordagens de adultério, palavrões, religião, “perversão sexual” (onde eram incluídos assuntos delicados como homossexualidade), entre muitos outros temas considerados inapropriados. Poucos imaginariam que, num contexto como esse, um dramaturgo como Tennessee Williams pudesse ver sua obra proliferar no cinema.

Tennessee Williams experimentou a popularidade mais do que qualquer outro dramaturgo de sua época. Embora tenha começado sua carreira de escritor para os palcos com uma peça mal recebida que sequer chegou à Broadway, logo deu a volta por cima e emplacou grandes sucessos de público e crítica. Entre 1945 e 1961, quinze peças assinadas por Williams foram levadas à Broadway, número muito superior às produções assinadas por outros grandes nomes do teatro americano como Edward Albee, Arthur Miller e William Inge. Nesse espaço de dezesseis anos, Williams testemunhou a adaptação de sete de suas peças para o cinema, o que alavancou sua popularidade a nível internacional. Seu nome logo se tornou sinônimo de sucesso de público e, muito provavelmente, também de crítica.

A conjunção de um interesse crescente em levar as peças de Williams para o cinema e a existência de um forte código censor é curiosa porque sua obra trata dos aspectos mais sombrios da experiência humana. Com forte apelo sexual e psicológico, suas peças lidam com temas ao mesmo tempo delicados e violentos, o que, para muitos, resumia-o como um autor exclusivamente interessado em chocar. Mais do que isso, contudo, Williams esteve sempre interessado em provocar e não se intimidava de dissecar seus personagens para explorar fantasias compartilhadas de desejo, loucura, autodestruição e, acima de tudo, libertação. Também é de se admirar que, antes de chegar ao cinema, Williams, tratando desses assuntos delicados muitas vezes abertamente, tivesse alcançado tamanho sucesso nos palcos, com tanta liberdade de expressão. Aqui, fica claro como, para os censores, Hollywood não poderia gozar da mesma liberdade artística que os dramaturgos. Provavelmente devido ao alcance do cinema, acreditava-se que o real perigo estava na contaminação da sétima arte pela “modernidade excessiva” que proliferava em livros e em peças teatrais. Se a imoralidade ficasse limitada a um público restrito e não alcançasse as audiências em massa, a corrupção moral seria muito menos significativa.

“Uma rua chamada pecado” (A Streetcar Named Desire, 1951), um dos primeiros sucessos de Williams no cinema, ainda no auge da censura, teve o roteiro revisado inúmeras vezes por tratar de temas delicados demais para os padrões do Hays Code: homossexualidade, ninfomania, adultério, estupro e, ainda, linguagem inapropriada. Depois de a peça ter se provado um sucesso na Broadway, despertando o interesse de potenciais adaptadores, estúdios e produtores esquivaram-se do projeto intimidados pelo conteúdo que desafiava tudo aquilo que estava sendo pregado na indústria da época. Após os apelos do próprio Tennessee Williams e de uma boa quantia em dinheiro, Elia Kazan aceitou comprar a briga e dirigir o projeto e, por isso, teve de se reunir diversas vezes com os censores para conseguir que o filme saísse do papel o menos mutilado possível.

Mais tarde, outra peça de Williams teria de lidar com a censura em Hollywood. “De repente, no último verão” (Suddenly, Last Summer), cujo argumento é fundamentado na homossexualidade do protagonista e na relação quase incestuosa que ele mantém com a mãe, surpreendentemente fez seu caminho para as salas de cinema em 1959. O texto já alusivo de Williams permaneceu alusivo no cinema, é claro, embora a adaptação cause um impacto gráfico consideravelmente forte, o suficiente para ter lhe rendido uma crítica destrutiva do The New York Times. Como foi possível, então, um filme tachado de “degenerado” por um dos maiores jornais do país ter passado pela censura? Para os administradores do código e principalmente para a Legião da Decência, o tratamento que o texto dava à homossexualidade serviria de lição, passando, supostamente, a mensagem de que o fim do protagonista, trágico e grotesco, seria o único fim possível para quem seguisse por esse caminho imoral – mesmo que a real intenção do autor, do roteirista ou do diretor não fosse exatamente essa. 

Manipulando, omitindo e distorcendo significados, o dano que a censura pode causar à arte é inegável. Por mais que ela seja driblada – o que não é tão impraticável assim, já que, devido a enorme demanda de material para ser controlado, os censores acabam pouco preocupados em discernir sutilezas e entrelinhas sugestivas –, algumas alterações forçadas são impossíveis de serem relevadas e podem, sim, prejudicar o objetivo inicialmente desejado. Williams diria, mais tarde, que “alguns [dos filmes adaptados das suas peças] são maravilhosos até os últimos cinco minutos, quando acabaram alterados para satisfazer os censores [...] O final de ‘Uma rua chamada pecado’ é completamente falso”. 

Por outro lado, é exatamente a necessidade de driblar a censura que estimula a criatividade e muitas vezes resulta em ótimas e inesperadas escolhas. Gore Vidal, responsável por adaptar o texto de Williams para o filme baseado em “De repente, no último verão”, relembra que, de fato, eles tinham de escrever um subtexto que deixasse o público cada vez mais perto da verdade censurada, mas não perto o suficiente para alcançá-la aos olhos dos censores. É nesse processo que o artista (neste caso, o adaptador), precisa lançar mão de uma combinação de linguagens sugestivas e escolhas estéticas de modo a, ao mesmo tempo, satisfazer os censores e suas próprias pretensões artísticas. Kazan, por exemplo, ao não aceitar cortar a cena de estupro do filme, teve de se comprometer a realizá-la com “bom gosto”, por mais absurdo que seja o paradoxo dessa expressão aplicada a esse contexto. Dessa decisão resultou uma cena que, cinematograficamente, fez jus à poesia de Williams e cumpriu seu propósito na história.

É normal que, ao tratarmos de adaptações para o cinema, o papel do adaptador acabe sempre atribuído ao roteirista e ao diretor, afinal, são eles que trabalham em contato mais direto com o texto adaptado, embora vários outros profissionais estejam envolvidos na produção. Porém, num contexto de forte censura, não deve soar como surpresa a possibilidade de se considerar a própria censura como adaptadora, seja para o mal, ao mutilar e subverter o texto, seja para o bem, ao compelir os adaptadores a tomar caminhos criativos inesperados, que talvez nunca fossem alcançados de outra forma. Essa parceria inusitada torna-se ainda mais evidente se considerarmos que, de fato, no mais das vezes, os bons artistas cooptam as forças criadas para contê-los e colocam-nas em prática ao reverso, lançando mão de táticas de insinuação que passam despercebidas aos olhos do mais treinado censor. Frente à afirmação de que a censura pode, de algum modo, ser benéfica (o que causaria a síncope de um artista que a lesse fora de contexto), não é preciso levantar-se para defender que ela não deve nem mesmo ser um empecilho. É claro que ninguém quer ser censurado. Mas, caso a censura se coloque no caminho, é possível tirar bom proveito dela. 

João Miguel cursa o sexto e último período de Bacharelado Bilíngue e, no PET, faz uma pesquisa sobre a influência da censura nas adaptações de Tennessee Williams para o cinema, orientado pelo Professor Leonardo Bérenger.

Obras de referência:
GILBERT, Nora. “Introduction: the Joy of Censorship”. In: Better Left Unsaid: Victorian Novels, Hays Code Films, and the Benefits of Censorship. Stanford: Stanford University Press, 2013.
HUTCHEON, Linda. A Theory of Adaptation. Nova York: Taylor & Francis, 2006.
KAZAN, Elia. Kazan on Directing. Nova York: Random House, 2009.

The Motion Picture Production Code of 1930 (Hays Code). Disponível aqui. Acesso em 06 de setembro de 2013.