Uma escolha menor

por Laura Assis 

Antes que o fim da tarde se desenhasse na mudança de tom que aos poucos toma um canto da janela e vai se estendendo até preencher todo o retângulo de escuridão, antes que não houvesse mais nenhum ponto visível através das placas de vidro entre os quatro traços que limitavam o retângulo na parede, antes que ficasse impossível viver sem pelo menos uma das luzes acesas, era preciso que algo fosse feito. Mas enquanto adia o momento de sair da cama, se enrolando mais uma vez no edredom, Davi só pensa que um dia vai precisar lavar o lençol impregnado da fumaça dos mais de vinte cigarros diários. O relógio do celular avisa que já passa do meio da tarde e ele se levanta ainda desacostumado com a própria consciência. É domingo, um dia em que é preciso apenas sobreviver. Mas uma sucessão de domingos tinha dominado as últimas semanas. Sobreviver? Mais necessário existir. Havia se passado três meses e ele, depois de tudo, ainda está no mesmo lugar.

Talvez resistir fosse apenas uma insistência, a necessidade de esquecer que ainda vivia naquele mesmo apartamento, em um prédio igual a tantos outros, naquela rua que não tinha nada de diferente, o mesmo bairro que parecia a cópia exata de milhares de outros, em uma cidade que poderia ser qualquer uma. Mas havia algo que destoava e estava por toda parte. No leite estragado na geladeira, no limo nos cantos do banheiro, nas portas sem maçaneta, nos livros não devolvidos para a ex-namorada, nos vários rascunhos inacabados, nas contas atrasadas e documentos perdidos. Os azulejos da cozinha se descolando um a um, as roupas sujas acumuladas no chão do quarto, os cinzeiros transbordando nos móveis empoeirados e a falta de algo que ele não se lembrava de já ter existido. Talvez uma espécie de saudade de tudo que corria bem até a metade, mas sempre estancava, e talvez porque ele ainda estivesse ali. 

Mais uma vez Davi cumpre então o ritual de pensar naquele dia, três meses atrás. Ele não sabe, mas imagina que Mariana tenha acordado por volta das onze, talvez com aquele tipo de ressaca perturbadora à qual ela já estava quase acostumada. Ele acha provável que ela tenha zapeado os canais à procura de nada e depois tenha ido para o computador. Pelo que conhece dela, é bem possível que tenha protelado um trabalho qualquer para conversar com pessoas aleatórias na internet enquanto tomava uma coca sem gás ou algo parecido. Ele imagina que ela tenha gastado a tarde inteira nisso, mas quando viu que já eram cinco horas, ela deve ter pensado que precisava fazer alguma coisa. Isso ele também não sabe, mas supõe com alguma convicção, assim como imagina que a primeira opção fosse achar alguém na internet que topasse ir imediatamente para o bar mais próximo. Ou pelo menos combinasse algo para o começo da noite. O que ele sabe com certeza é que naquele dia ela não encontrou ninguém.

Escrever poderia ser um jeito de parar de pensar em Mariana e no que tinha acontecido três meses atrás. Então Davi busca em um caderno ao lado da cama algumas anotações feitas na madrugada anterior. Versos rudimentares e sem aparente conexão tentam formar um esboço de poema. Mas não existe caminho entre palavras que foram escritas no torpor da fuga, não existem palavras que funcionem como desvio de um lugar pelo qual é necessário passar, porque o torpor, o caminho, a fuga e as palavras acabam se tornando o desvio e o lugar. Escrever é sempre uma maneira diferente de lembrar. 

O telefone toca, mas faz tempo que ele não se preocupa em atender. Talvez uns dois meses e meio ou três. No início, tocava muito. Várias vezes por dia. Ele nem pensava em desligar nem nada parecido, não se importava em deixá-lo tocar. As pessoas desistiam mais facilmente do que confessariam se alguém perguntasse. E agora não faz diferença, já que ele tem quase certeza que naquele dia a segunda opção dela era pegar o telefone e ligar pra ele. Davi acha que Mariana chegou a procurar o nome dele na agenda do celular, mas antes de clicar em “chamar” acabou desistindo, porque sabia que ele não ia querer sair e nem teria tempo para conversar, atenderia ao telefone impaciente e daria logo uma desculpa para desligar. Então ela não ligou e isso ele podia afirmar. 

O que Davi não sabe nem consegue lembrar é o que ele estava fazendo três meses atrás, na hora em que ela descartou a segunda opção. É claro que ele já tinha inventado algumas possibilidades e elas se encaixavam tão bem na história que obviamente não poderiam ser verdade. Ele estava dormindo e de repente despertou de um sonho estranho com um pressentimento ruim. Ele estava escrevendo quando uma frase pareceu ser escrita por uma parte dele que pressentiu o que ia acontecer. Ele estava olhando pela janela distraidamente pensando justamente no que ela estava fazendo naquele momento. 

Mas a vida não tem um terço da imprevisibilidade dos filmes e a verdade era que ele não se lembrava pelo simples fato de que não estava fazendo nada naquele dia, três meses atrás. Enquanto a oito quarteirões dele, ela largava o celular em cima da cama e ia para a sacada, ele estava sentado na sala, imóvel, não fazendo absolutamente nada, exatamente como está agora, três meses depois, mais ou menos no mesmo horário em que, sem pensar muito, ela escolheu a terceira opção que, desde sempre, tinha sido pular.

"Uma escolha menor", de Laura Assis, foi o vencedor na categoria Escolha dos Alunos de Prosa no V Prêmio Paulo Britto de Prosa e Poesia.